Por: BBC News
Um aplicativo de recrutamento que liga 5 mil garçons, cozinheiros, cumins, bartenders e outros profissionais “freelancers” da área de bares e restaurantes a mais 200 estabelecimentos programou seu algoritmo para emitir um alerta às empresas quando contratarem mais de duas vezes em uma semana o mesmo funcionário.
Pagos por diária, aqueles que não fazem parte do quadro fixo de empregados poderiam recorrer à Justiça para formalizar um eventual vínculo empregatício caso ficasse comprovado, por exemplo, que a prestação de serviços é habitual, e não extraordinária.
Uma vez comprovado, eles passariam a ter direito, por exemplo, à multa de 40% dos depósitos do FGTS em caso de dispensa sem justa causa.
O app Closeer, lançado em dezembro de 2018 motivado pela reforma trabalhista e pela criação do contrato intermitente, tem entre seus objetivos diminuir a “exposição” das empresas à Justiça do Trabalho – além de diminuir o tempo que bares e restaurantes levam hoje para encontrar funcionários extras.
Vigente desde o fim de 2017, o contrato intermitente é aquele em que a empresa registra em carteira o funcionário, mas sem estabelecer salário ou jornada fixa. O trabalhador pode ser convocado por alguns dias ou horas no mês, a depender da demanda por parte do contratante.
Entre janeiro e junho deste ano, o Brasil criou 408,5 mil vagas com carteira assinada, o melhor resultado dos últimos 5 anos.
Desse total, 50.345, ou 12,32%, são postos de trabalho com contrato intermitente (38,4 mil) ou parcial (11,9 mil). Esta última modalidade já existia, mas foi flexibilizada com a reforma trabalhista, que virou a Lei 13.467.
No mesmo período do ano passado, a participação desses vínculos mais flexíveis no saldo total de vagas formais foi de 9,46%, 33,4 mil ao todo.
O trabalho intermitente vem numa crescente desde o ano passado. Sua participação no saldo de vagas formais registradas pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) saltou de 5,5% no primeiro semestre de 2018 para 9,4% no mesmo período deste ano. Em junho, respondeu por 21% do total de postos criados.
Ele foi um dos pontos mais polêmicos da reforma trabalhista e é frequentemente apontado por críticos como uma “formalização do bico”.
Desde que foi instituída, a modalidade é questionada em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal, lembra Otávio Pinto e Silva, sócio coordenador do setor trabalhista da SiqueiraCastro e professor na USP.
Na ação, uma entidade sindical argumenta que a criação de regimes flexíveis como esse viola princípios constitucionais como o da dignidade humana e do valor social do trabalho.
O advogado reconhece que a criação do trabalho intermitente “atende a uma demanda empresarial”, e pontua que nesse debate também se discute se a modalidade não seria uma alternativa ao desemprego, para garantir “alguma renda” aos trabalhadores em momentos de crise.
“Mas não há como negar que é uma forma de emprego mais precária”, diz o professor, ressaltando que muitos desses trabalhadores, apesar de receberem o que seria proporcional ao pagamento de férias por período de serviço, dificilmente conseguem tirar férias de fato, justamente por terem pouca previsibilidade em relação à jornada.
Para entender se esse aumento das contratações em regimes mais flexíveis significa ou não uma tendência de precarização do mercado de trabalho, para o professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília Carlos Alberto Ramos, “é preciso saber se o trabalhador optou por esse tipo de contrato ou foi ‘obrigado’ a aceitar pelas circunstâncias”.
A BBC News Brasil encontrou exemplos de ambos os casos.
‘Oportunidade de trabalho a gente não pode perder’
Para Joselicia Tavares Félix, o trabalho em jornada parcial significou o fim de um ciclo de um ano e meio de desemprego.
Desde que fora desligada de uma empresa de telemarketing, a jovem de 23 anos e a mãe, com quem mora no bairro do Jaguaré, em São Paulo, vinham fazendo uma série de ajustes nos gastos para acomodar o orçamento doméstico mais restrito.
O primeiro corte foi a internet – seis meses sem banda larga. Depois, a troca de artigos mais caros no supermercado por similares mais baratos.
Jose vinha fazendo bicos “aqui e ali” – trabalhou sem registro como caixa em um restaurante, por exemplo -, mas, quando apareceu a vaga para trabalhar com carteira assinada sete horas por dia às segundas, terças e quartas em uma varejista, ela não teve dúvida.
“Oportunidade de trabalho (formal) a gente não pode perder, né?”
Com os descontos, a remuneração chegava a R$ 380. Foram quatro meses nesse regime, até que lhe ofereceram a jornada “cheia”, de 44 horas semanais.
No fim de julho, quase um ano depois de começar no emprego, ela foi promovida de auxiliar de vestuário a vendedora, com aumento no salário.
“Finalmente os caminhos se abriram”, comemora.
Com casamento marcado para novembro, ela e o noivo, que é ajudante de pedreiro, vêm comprando devagarinho os móveis e eletrodomésticos da casa nova no bairro de Pirituba, em São Paulo. A mãe, que trabalha como auxiliar de limpeza, deu o fogão, e a sogra, a máquina de lavar.
Só falta a TV – mas essa ela deixou para comprar na Black Friday, com desconto.
‘Rezava para cobrir férias’
Para Sabrina* (nome preservado a pedido da entrevistada), a passagem de intermitente para o contrato CLT por prazo indeterminado em uma empresa terceirizada de limpeza em São Paulo foi mais demorada.
Como intermitente, ela geralmente “cobria atestado” – trabalhava quando um funcionário adoecia ou quando havia faltas. A terceirizada entrava em contato com ela por WhatsApp, informava o tipo de serviço, a duração da diária e passava o endereço da empresa contratante.
A jornada de quatro horas pagava R$ 60 mais o transporte e a de oito, R$ 80, transporte e alimentação. Como o trabalho não tinha regularidade, ela não tinha ideia de quanto ganharia no mês.
“Pai e mãe para o filho”, ela diz que “rezava pra cobrir férias”, que lhe rendiam mais por serem períodos mais longos de trabalho. Quando isso não acontecia, sustentava a casa com o que recebe do Bolsa Família.
Quase um ano depois, começou a insistir com os coordenadores de que tinha chegado “ao limite”. Ameaçou deixar a empresa e acabou conseguindo um contrato permanente.
De Minas a São Paulo em busca de emprego
Simone Moreira também procurava um trabalho em tempo integral quando encontrou uma posição como intermitente em uma rede varejista.
Já havia feito “um pouco de tudo”: trabalhado como babá, auxiliar em serviços gerais, em loja de roupas. O último emprego com carteira assinada foi em um supermercado, onde passou 8 anos.
Mas, após três meses buscando uma vaga depois de se mudar da mineira Itaipé para São Paulo no início de 2019, ela preferiu aproveitar a oportunidade.
A loja lhe mandava e-mail oferecendo os turnos, em geral para as quintas, sextas e sábados, dias de maior movimento.
Ela deixou Itaipé porque o marido, pedreiro, conseguiu emprego em uma obra na capital paulista. “Lá tá bem parado na área dele.”
Sete meses depois da mudança, a obra acabou, o companheiro conseguiu uma vaga como ajudante em uma padaria e o casal, que mora em Barueri, está juntando de dinheiro para voltar a Minas daqui a alguns anos.
Simone acabou sendo contratada como funcionária permanente, mas lembra que parte dos colegas admitidos para reforçar as vendas no fim do ano foram desligados nos últimos meses.
De doutora em química a ‘beer sommelier’ intermitente
A engenheira química Marcia Lacerda, de 30 anos, foi contratada como intermitente por opção. A modalidade, para ela, traz a flexibilidade de que precisa para estudar para concursos públicos.
Neste ano, a cearense passou três meses trabalhando por alguns dias da semana em um pub em Fortaleza.
Ela acabou fazendo um curso de beer sommelier durante a pesquisa de doutorado – que tem como tema uma enzima que acelera a fermentação da cerveja -, e decidiu procurar o “extra” nessa área.
Como o número de concursos para docente na sua área diminuiu e a concorrência cresceu nos últimos anos, Marcia poupou parte da bolsa da pesquisa de mestrado e doutorado e tem “dois anos garantidos”.
Mas viu no trabalho intermitente uma possibilidade de garantir renda extra. Ela saiu do pub em que trabalhava desde abril por causa da distância de casa, mas segue de olho nas vagas postadas no grupo de uma confraria de mulheres cervejeiras que acabou conhecendo graças ao trabalho.
Precarização?
O economista Carlos Alberto Ramos explica que as modalidades de contrato mais flexíveis foram adotadas em países do sul da Europa como a Espanha para tentar lidar com o desemprego entre os jovens, que alcançou níveis recordes após a crise de 2008.
O trabalho de meio período ou em alguns dias na semana poderia ser uma alternativa para que eles ganhassem experiência para que, em um segundo momento, conseguissem uma vaga em tempo integral.
Nesses países ainda há uma grande discussão sobre esse assunto, que divide opiniões. De um lado, argumenta-se que é preferível um trabalho mais precário ao desemprego.
De outro, há os exemplos de países como Alemanha e Áustria, que conseguem ter um nível de desemprego baixo entre os jovens sem necessariamente recorrer a modalidades mais precárias de emprego. Lá, as escolas são “duais” (misturam teoria e prática) e a transição entre a escola e mercado de trabalho é mais “suave”, diz o especialista em mercado de trabalho.
No caso do Brasil, entretanto, a maior parte dos contratados intermitentes tem mais de 30 anos. Aliás, nas faixas etárias acima de 30 anos só houve saldo positivo de emprego com carteira no primeiro semestre de 2019 em regime de contrato intermitente.
Ou seja, nesses grupos houve mais demissões do que contratações no período.
“Quando esse tipo de trabalho (intermitente ou parcial) envolve mais os adultos, que geralmente são a principal fonte de renda da casa, aí é complicado”, pondera Ramos.
Outra forma de medir se o aumento das contratações intermitentes e com jornadas parciais indica uma precarização seria verificar se esses trabalhadores gostariam de trabalhar mais horas ou por mais dias.
Os dados do Caged não trazem essa informação, mas outra pesquisa mensal sobre o mercado de trabalho, a Pnad Contínua, faz a pergunta aos entrevistados.
O número de pessoas subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas – ou seja, que gostariam de trabalhar mais horas do que efetivamente trabalharam no mês da pesquisa – bateu o recorde da série histórica, iniciada em 2012, atingindo 7,4 milhões.
Esse e outros indicadores – como o do número de desalentados, que segue em nível alto, 4,8 milhões – são um contraponto à redução da taxa de desemprego observada no segundo trimestre e reforçam as avaliações de que não há ainda um sinal claro de reversão da estagnação do mercado de trabalho.
“São variações da série. Um mês o desemprego aumenta, em outro cai. Enquanto a economia não recuperar não vai haver geração consistente de emprego”, avalia o economista.
A queda na taxa de desemprego no trimestre de abril a junho, de 12,7% no primeiro trimestre para 12%, foi concentrada no aumento das contratações sem carteira assinada e por conta própria.
Além disso, tirando os efeitos da sazonalidade – já que no primeiro trimestre o desemprego tradicionalmente sobe, com a dispensa dos temporários contratados para o Natal -, a taxa não variou, se manteve estável em 11,9%, de acordo com os cálculos do banco Itaú.
O garçom aluno de pós-graduação
O goiano Luiz Henrique Pimento, de 38 anos, faz parte das estatísticas de subutilização da força de trabalho.
Pós-graduando em biomedicina no Instituto do Câncer em São Paulo, há um ano ele trabalha como garçom ou cumin freelancer na plataforma Closeer.
Em geral, faz dois serviços por semana, pelos quais recebe R$ 220. O dinheiro vai para o aluguel. As demais despesas são cobertas pela bolsa de pós.
A contratação é informal – algo que, de acordo com Walter Vieira, presidente executivo da Closeer, o aplicativo desaconselha às empresas que usam o serviço. Aos poucos, a plataforma tem sugerido aos profissionais que se tornem microempreendedores individuais (MEI), um movimento iniciado pelos aplicativos de transporte.
No caso específico do trabaho intermitente, um dos motivadores do surgimento do app, a plataforma reforça aos usuários que a modalidade segue questionada na Justiça e alerta sobre possíveis riscos.
Aos 17 anos, Luiz se alistou e passou quatro anos nas Forças Armadas. Foi na Marinha que ele começou a trabalhar na área gastronômica, no restaurante da base. Aproveitou a experiência e foi para Brasília, onde passou seis anos em uma terceirizada que prestava serviços para restaurantes.
Juntou dinheiro, fez faculdade e passou a procurar um emprego na área que escolheu, em radiologia ou medicina nuclear.
Na última semana recebeu a boa notícia: espera o cumprimento da papelada burocrática para começar a trabalhar.