Por: BBC News
Estamos vivendo o primeiro evento global de trauma coletivo em décadas. É sem dúvida o primeiro desde a Segunda Guerra Mundial, e provavelmente o primeiro dessa gravidade da sua vida.
No momento em que esta reportagem é publicada, mais de 2,5 milhões de vidas haviam sido perdidas, sendo mais de 252 mil delas no Brasil, número que aumenta aos milhares a cada dia. A economia global, as complexas redes de relações internacionais, a saúde mental individual, o vai e vem da vida cotidiana: nada foi poupado durante a pandemia.
Quando pensamos em covid-19, no entanto, o “trauma” pode não ser a primeira coisa que vem à cabeça, quanto mais “trauma coletivo”. Outras referências — econômicas, políticas, ecológicas, científicas — podem parecer mais adequadas.
E mesmo dentro do campo da saúde mental, “trauma” não costuma ser o tema preferido nas discussões da mídia, que se concentram mais em outros problemas como depressão, ansiedade, solidão e estresse.
Trauma é um conceito muito mais sutil do que muitos de nós imaginam. Não é apenas uma palavra para algo extremamente estressante. Nem sempre são provenientes de choques breves e acentuados, como acidentes de carro, ataques terroristas ou tiroteios.
E trauma não é a mesma coisa que transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Trauma é sobre eventos e seus efeitos na mente.
Mas o que o distingue de algo meramente estressante é como nos relacionamos com esses eventos em um nível profundo.
Depois que a pandemia acabar, os efeitos do trauma coletivo que ela infligiu vão permanecer nas sociedades por anos.
Como podemos entender esse efeito mental? E o que a ciência do trauma sugere que devemos — e não devemos — fazer para nos curar?
O trauma pode ser entendido como uma ruptura na “construção de significado”, diz David Trickey, psiquiatra e representante do Conselho de Trauma do Reino Unido.
Quando “a maneira como você se vê, a maneira como você vê o mundo e a maneira como você vê as outras pessoas” são abaladas e reviradas por um evento — e surge uma lacuna entre seus “sistemas de orientação” e esse evento — o estresse simples se transforma em trauma, frequentemente mediado por sentimentos fortes e prolongados de impotência.
Até mesmo nossas tragédias mais cotidianas podem gerar traumas. Ser demitido de um emprego, por exemplo, pode ser altamente traumático.
A identidade de alguém, a base do “GPS pessoal”, muitas vezes está ligada ao trabalho e sua realização.
Um trabalho proporciona autoestima, propósito e uma rede social, além de englobar as atividades de grande parte da vida. Ser demitido inesperadamente subverte tudo isso. O estresse se acumula e o sistema nervoso é colocado em estado de alerta máximo.
A resiliência mental, o óleo que movimenta nossa máquina cognitiva e nos faz seguir em frente no estresse, se esgota.
E se nada preencher a lacuna — nada externo para definir e avaliar o seu valor, nenhuma outra razão para continuar, nada para explicar o “porquê, como e para que” de cada dia — por algum tempo, a pessoa pode ficar à deriva.
É preciso atualizar e reformular suas crenças e senso de identidade, uma nova rodada de “construção de significado” para superar o impacto do trauma.
O trauma não é necessariamente proporcional à intensidade de um evento. Algumas pessoas vão processar o que aconteceu melhor do que outras e, como Trickey aponta, nossa construção de significado não é uniforme.
Além de não haver necessariamente uma relação entre a força aparente de nossos sistemas de crenças e sua aplicação no trauma, “isso pode realmente depender do tipo de dia que você está tendo”, diz Trickey.
“É realmente difícil descobrir o que será traumático para quem.”
Quando o trauma se torna viral
No entanto, mesmo com uma compreensão melhor do trauma, a ideia de um “trauma coletivo” pode levantar algumas questões.
Se o trauma tem a ver com a interface de eventos e mentes individuais, o que torna possível um trauma coletivo? Os próprios grupos podem ficar traumatizados? E por que a covid-19 pode ser um estudo de caso?
Em seu nível mais simples, um trauma coletivo ocorre quando o mesmo evento, ou série de eventos, traumatiza um grande número de pessoas em um intervalo de tempo compartilhado.
E embora não tenha a intensidade explícita e acelerada de uma guerra ou ataque terrorista, a covid-19 é, em muitos aspectos, um caso clássico.
Obviamente, a pandemia está gerando um luto em grande escala. A morte traumatiza sempre e em toda parte.
Para os entes queridos, a rápida deterioração observada em alguns casos de covid-19 — quando pacientes inicialmente com sintomas leves são levados à morte em poucos dias — dificulta a preparação emocional. A restrição de visitas no hospital torna a despedida e as conversas complicadas.
Os rituais de luto que se seguem à morte também foram virados do avesso, com funerais com distanciamento social e redução do número de participantes.
Os lembretes contínuos do vírus podem desencadear memórias tóxicas e traumatizar novamente. Magdalena Zolkos, filósofa da Universidade Goethe em Frankfurt, na Alemanha, coloca a questão da seguinte forma: com “a incapacidade coletiva de processar no presente”, os mortos “podem voltar a assombrar, mas tardiamente”.
Nas enfermarias dos hospitais, médicos e enfermeiras enfrentam um potencial traumático considerável. De acordo com uma pesquisa, depois de trabalharem em isolamento com pacientes graves, cerca de 20% dos profissionais de saúde enfrentam efeitos pós-traumáticos.
Cercados diariamente pela morte, recursos limitados e imagens vívidas de tubos e máquinas de suporte à vida, esses profissionais enfrentam um elemento adicional de trauma por “dano moral”: quando sua própria identidade de seres humanos éticos é levada ao limite por decisões sobre quem vive e morre.
Pegar um caso grave — com cerca de um quinto dos milhões de pacientes com o vírus necessitando internação — também pode ser um trauma considerável.
Os encontros aterrorizantes com a morte, a devastação dos entes queridos e os próprios sintomas característicos da doença podem ser opressores.
“Ser incapaz de respirar é o evento mais traumático que você pode imaginar”, diz Metin Basoglu, fundador da faculdade de estudos de trauma da Universidade King’s College London, no Reino Unido.
“Simplesmente porque não há nada que você possa fazer a respeito. Quando você fica sem ar, é um excelente exemplo de impotência.”
Essa é uma sensação que frequentemente leva o estresse intenso para o reino do trauma.
O que torna o trauma da covid-19 verdadeiramente “coletivo”, no entanto, é seu impacto em toda a população — incluindo aqueles que nunca irão pegar o vírus ou até mesmo conhecer pessoas que tenham sido infectadas.
Para muitos, a perspectiva de contrair uma doença mortalmente invisível, embora não realizada, é óbvia e intrinsecamente assustadora.
E convida ao que os pesquisadores chamam de “medo interoceptivo”: quando nossa fonte de estresse não é uma ameaça óbvia no ambiente externo, mas nossa interpretação dos processos mecânicos do corpo (provavelmente normais).
Além disso, em comparação com a estagnação da vida em lockdown, é difícil de compreender a propagação exponencial do vírus. Nosso próprio senso da vida real e seus ritmos são interrompidos, e abundam os relatos não-científicos de tempo distorcido, “um ano de névoa”, e distração mental.
A atenção constante no noticiário sobre covid-19 também não ajuda. A transmissão e repetição de notícias pandêmicas, embora necessárias, trazem o risco de “trauma vicário”, quando histórias assustadoras desencadeiam sentimentos de estresse traumático naqueles que não contraíram a doença.
Por exemplo, uma pesquisa feita com psicoterapeutas que ouviram relatos de pacientes sobre experiências traumáticas na pandemia mostrou que cerca de 15% sentiam “níveis elevados” de trauma vicário, com a média dos entrevistados enfrentando ainda “níveis moderados”.
O fato de o ambiente não ser obviamente ameaçador também é parte do problema. O mundo comum — amigos, família, vizinhos e lugares, que constituem a normalidade — ainda parece o mesmo, mas foi reformulado como um espaço repleto de perigos físicos.
Os fundamentos da nossa visão de mundo — as mesmas coisas para as quais nos voltamos quando estamos sob pressão de ameaças mais tangíveis — são minados. É um Catch-22 (expressão cunhada pelo escritor americano Joseph Heller, para se referir a dilemas paradoxais sem saída) num nível básico.
O dilema também é mais prático. Em tempos de trauma coletivo, seja durante ataques de foguetes em Israel e na Palestina, ou turbulência nas universidades de Hong Kong, a evidência é clara de que reuniões comunitárias e redes sociais são essenciais para uma recuperação adequada.
Com a covid-19, no entanto, encontrar outras pessoas é exatamente o que espalha o vírus. O tratamento para o trauma coletivo em um dos casos, é o problema no nosso.
De forma mais tangível, a desaceleração econômica global gerada pela covid-19 e os lockdowns levaram milhões de pessoas para tempos desconhecidos. Falência, desemprego, planos de vida abalados: os resultados da recessão de 2008 indicaram um aumento claro e crônico na saúde mental.
“Se uma pessoa está desempregada, é uma crise de sentido pessoal “, diz Gilad Hirschberger, psicólogo social do Centro Interdisciplinar Herzliya, em Israel.
“Mas quando uma grande porcentagem da população deste país não trabalha mais, isso se torna uma crise de sentido [para o sistema].”
Para quem ainda tem emprego, as recentes transições para o trabalho remoto podem ser sutilmente traumáticas.
“A definição de quem eles são muda”, explica Hirschberger.
A exposição das crianças a traumas coletivos vicários e não vicários é especialmente crítica. Como suas âncoras narrativas são menos concretas do que as dos adultos, as crianças são, ao mesmo tempo, mais adaptáveis, mas também mais sensíveis.
“Elas poderiam desenvolver uma visão de mundo bastante assustadora”, diz Trickey, do Conselho de Trauma do Reino Unido.
“Sabe como é: ‘Meus pais não estão lidando bem com a situação; o mundo não é seguro; e as pessoas que deveriam cuidar de nós, não estão fazendo seu trabalho’. Isso leva, se não formos cuidadosos, a uma coloração permanente da sua visão das coisas.”
“Costumo pensar nisso como uma lente. Você tem uma lente através da qual vê o mundo, você mesmo e outras pessoas. E os eventos vão colorir essas lentes. [Com bastante estresse], mesmo quando esses eventos terminam, algumas pessoas ficam com as lentes coloridas.”
Se algumas crianças ficarem traumatizadas no longo prazo, a covid-19 corre o risco de ser um fenômeno intergeracional, uma vez que elas crescerem e tiverem seus próprios filhos.
Elas podem transmitir seu trauma encorajando a imitação inconsciente, o condicionamento deliberado e consciente, ou até mesmo pela epigenética, quando o estresse traumático altera materialmente uma herança genética (embora as pesquisas nesse campo ainda estejam em estágio inicial).
Estudos com aborígenes australianos, por exemplo, relacionaram disparidades e baixos resultados na conclusão da educação, emprego, mortalidade infantil e outras métricas sociais a ondas de traumas históricos.
Talvez o maior problema do trauma coletivo seja a quantidade. Quando as mentes de milhares (no caso da covid-19, possivelmente dezenas de milhões) de pessoas em todo o mundo são traumatizadas em uma rápida sucessão, isso coloca uma enorme pressão na infraestrutura de saúde mental — e, não menos importante, entre os tipos de pressão social e econômica que geralmente se seguem a um choque sistêmico.
O “como e para que” de uma resposta puramente psiquiátrica exigiria um artigo em si. Abordar o trauma coletivo também exigirá mais do que a psiquiatria, sugere Basoglu.
A dimensão do problema significa que as ferramentas de criação de significado “devem ser fornecidas por meio de canais de mídia: por escrito, em livretos e vídeos, canais infantis, canais de TV, jornais, todas as vias de informação, qualquer canal de informação, a internet”.
Os efeitos dos traumas coletivos são mais do que psicológicos, diz Basoglu, mas se espalham para impactar a sociedade de forma mais ampla.
Uma vez que um grande número de pessoas está traumatizado — seus relacionamentos alterados, sua conexão com sistemas sociais mais amplos rompida, sua função como cidadãos prejudicada —, “há efeitos sociais, efeitos econômicos, efeitos políticos”.
Um estudo com sobreviventes de trauma coletivo na China, por exemplo, mostrou que sua participação política diminuiu permanentemente. O trauma coletivo pode até gerar uma ânsia coletiva por líderes fortes, acelerando o autoritarismo e fomentando as condições para reações políticas precipitadas e aparentemente decisivas.
E, como fenômeno que afeta um grupo, o trauma coletivo altera e ativa as formas mais sutis pelas quais os grupos se unem: em outras palavras, os pilares da construção de significado, a variável independente do trauma, a nível de grupo.
Grupos vs indivíduos
Os psicólogos sociais os chamam de “tecidos básicos da vida social”: histórias de origem comum, expectativas de conduta, rituais, instituições e espaços sociais compartilhados, senso de destino, sua relação com “o outro”, quem “o outro” pode ser .
Paralelamente ao indivíduo traumatizado, cujos próprios tecidos psíquicos são dilacerados por um evento, o trauma coletivo arrisca um golpe nos tecidos sociais do grupo, tão forte que seu interior pode ser comprometido.
Jeffrey Alexander, um sociólogo de Yale, notou o impacto da covid-19 de maneiras sutis e prejudiciais. Segundo ele, os tecidos sociais dos Estados Unidos, por exemplo, são consumidos por uma “sensação de caos, de descontrole, como se o país estivesse se desintegrando” provocada pela pandemia.
E o trauma coletivo dos Estados Unidos foi um golpe duplo, sugere Alexander.
Os protestos do movimento Black Lives Matter em maio, combinados com a crescente consciência das fortes desigualdades raciais em mortes que viralizaram, levaram a covid-19 a cruzar com traumas históricos mais antigos a respeito da raça.
As evidências sugerem que as pessoas negras enfrentam traumas intergeracionais de racismo e discriminação. Esses eventos levantaram temores de um trauma coletivo em cascata com implicações mais nocivas.
Em alguns casos de trauma coletivo, os tecidos sociais do grupo podem se adaptar e regenerar.
Se um trauma coletivo está explicitamente ligado à identidade do grupo, ele pode, após algum tempo de destruição e deslocamento, fornecer um ingrediente insubstituível para uma nova rodada de construção de significado.
Usando o exemplo do Holocausto, Hirschberger escreveu que a relação do grupo com o trauma, e seu empenho para transcender, processar e incorporá-lo em rituais e conversas, “se torna o epicentro da identidade do grupo”.
Claramente, no entanto, a covid-19 não é uma ameaça existencial para grupos isolados como o Holocausto foi. Parte de seu perfil traumático é a globalidade do vírus.
No entanto, na nossa luta por significado, a invocação de mitos nacionais e regionais tem sido bastante comum.
Na Inglaterra, a experiência da Blitz (chuva de bombas alemãs sobre Londres e outras cidades inglesas) — um dos marcos da “memória nacional” — é invocada com frequência, para reforçar os sentimentos de comunalidade e vizinhança tão necessários.
As discussões sobre a Segunda Guerra Mundial, talvez nosso ponto de referência mais comparável, também são comuns, assim como a noção geral de travar uma guerra contra o vírus.
O ex-presidente americano Donald Trump comparou a covid-19 ao ataque japonês de 1941 à base naval americana de Pearl Harbor, e responsabilizou a China pela doença.
O problema de esquecer
Porém, talvez mais do que qualquer outra coisa, os perigos sociais prolongados do trauma coletivo consistem no esquecimento. Quando não é processado, não é discutido, talvez ativamente reprimido, os tecidos sociais do grupo permanecem perturbados — e não cicatrizam. Traumas individuais se acumulam sem ser reconhecidos e apodrecem sob as rachaduras.
No Líbano, as comunidades afetadas pela guerra foram observadas passando por “traumatização sequencial” ou ciclos de “hiperexcitação” e “entorpecimento”, assim como grupos de refugiados traumatizados na Síria e na Palestina.
Expostos a lembretes de um trauma não processado, os indivíduos podem se comportar com agressividade e ansiedade. Ou, na esperança de evitar a re-exposição aos gatilhos, podem agir com “evasão, apatia ou passividade”.
A nível de grupo, pode haver episódios cíclicos de violência e agressão contra outras pessoas, seguidos de abstinência. Às vezes, autoridades podem até fingir que os eventos traumáticos originais nunca aconteceram, incluindo a censura de livros escolares.
Na política delicada de uma nova liderança, esse esquecimento — uma atração fatal para comunidades traumatizadas — pode formar um motor especialmente potente de ressentimento e tensão social.
Com isso em mente, talvez seja surpreendente que a covid-19 seja perigosamente fácil de esquecer. É o que a história sugere, pelo menos.
A última pandemia global, de gripe espanhola em 1918, foi tão sequestrada da memória nacional que os comentaristas a chamaram de “Gripe Esquecida”.
Pelo menos 50 milhões de pessoas sucumbiram ao vírus em todo o mundo, mas superficialmente parece não ter feito nenhum arranhão na imagem pública de nossos tecidos sociais.
Arte e literatura, por exemplo, são pilares frequentes para a memória. No entanto, a gripe espanhola não pareceu inspirar muita atenção.
A atenção da imprensa se esgotou, e os reconhecimentos públicos foram escassos. Com exceção da Nova Zelândia, nenhum país instituiu qualquer ato de memorial nacional, sejam estátuas, pedestais, monumentos, datas em memória, minutos de silêncio ou outros instrumentos.
Martin Bayly, cientista social da London School of Economics (LSE), revisou os arquivos do Reino Unido, onde cerca de 250 mil pessoas morreram.
“Não consegui encontrar nenhuma evidência de qualquer homenagem pública”, diz ele.
“E a ausência de memoriais fez com que desaparecesse da memória pública, na escrita da história.”
Em 1935, os historiadores médicos perceberiam — alguns compreensivelmente perplexos — o esquecimento da gripe espanhola.
Décadas mais tarde, nos surtos de Aids e ebola, ativistas fariam esforços extras de memória, conscientes de que estavam desaparecendo da visão histórica.
E por que a gripe espanhola foi exatamente “esquecida” é uma questão complexa da história. O impacto da Primeira Guerra Mundial, Bayly reconhece, não pode ser subestimado. Mas as pandemias de gripe subsequentes, como as de 1957 e 1968, também não receberam memoriais ou foram rememoradas, apesar de terem ceifado dezenas de milhares de vidas em todo o mundo.
O fato de continuarmos esquecendo as pandemias podem, na verdade, refletir sua própria natureza.
Lembrar e dar significado ao trauma pandêmico é difícil, porque, em comparação com outros tipos de trauma coletivos, as mortes por doenças simplesmente não são “contáveis” ou “narrativizadas”.
Elas têm alguma “razão”, como as mortes na guerra? Quem é o adversário que derrotamos quando o inimigo está internamente? Que história iminente uma pandemia evoca na mente das pessoas? Qual é a moral da história do “nunca mais”?
Em outras palavras, as pandemias raramente são “problemas de comissão”, quando o trauma surge de decisões claras e maliciosas de certos indivíduos e grupos.
Isso torna a resposta ao “como, quem e por quê” por trás do trauma ainda mais desafiadora. Embora a ação humana tenha desempenhado um papel inegável em sua disseminação, “ninguém está tentando infectar todo mundo com covid-19”, diz Hirschberger.
“É apenas algo que é um produto de como vivemos e de toda a humanidade.”
Por mais difícil que seja de implementar, não rememorar é uma decisão em si. E, desde o início, torna o esquecimento — com os riscos inerentes à saúde mental individual e à coesão social — mais provável.
Não relembrar pode até afetar nossa preparação para crises futuras. Em meio à pandemia de 1957, analistas destacaram que “falhamos completamente em aprender as lições de 1918”, diz Bayly.
E, como a gripe de 1957 também foi esquecida, ele sugere que nossa consciência do risco de pandemia — e nossa resposta à covid-19 — teriam sido muito melhores se tivéssemos tentado ativamente lembrar nosso próprio passado.
A memória nacional é mais importante ainda. Ao oferecer a construção de significado e um canal para o luto, ela processa o trauma coletivo em sua própria escala.
Uma homenagem imposta de cima para baixo só é reforçada quando combinada com abordagens de baixo para cima — arte, memoriais locais, arquivos digitais e simplesmente lembranças pessoais de cada um — agora mais compartilháveis do que nunca com as redes sociais.
Os esforços de memória da covid-19 estão em andamento e já parecem promissores. No Reino Unido, em meio à complexidade e ao caráter turvo da pandemia, a narrativa nacional parece centrada no papel do NHS, serviço público de saúde, e dos trabalhadores essenciais: uma estrutura de construção de significado interpartidária, profundamente simbólica e rica em lições sociais.
Para além das homenagens em tempo real dos aplausos para os profissionais de saúde, foi feito um minuto de silêncio na noite de 4 de julho, véspera do aniversário do NHS.
Houve pedidos de um monumento para o “999” (número para emergências) no centro de Londres; um monumento para os profissionais do NHS no National Arboretum; e um memorial para os trabalhadores da área de transporte mortos na Victoria Station.
Junto com Katharine Millar e Yuna Han na LSE, Bayly deseja que os “mortos comuns” da covid-19, a maior extensão do trauma nacional, sejam explicitamente reconhecidos também.
Eles recomendaram ao Reino Unido que seja instituído um dia de memória nacional da covid-19 no próximo ano, como uma “área chave para a política governamental”.
“Queremos muito que seja um dia em que não se espere que as pessoas trabalhem”, diz Millar.
O acionamento do botão de pausa nacional pelo governo “seria uma forma eficaz de manter formalmente a base da conversa pública e da experiência coletiva para reconhecer a perda, o trauma e o sofrimento”.
Além disso, a pandemia tem sido tão prolongada, com uma cauda tão longa, que precisa urgentemente de um “aparador de livros”, sugere Millar. Seria um prazo para marcar um horizonte e equilibrar o passado e o futuro.
Um ponto de virada?
A covid-19 é um trauma coletivo como nunca vimos antes. Nossas extensões sociais mais complexas e os blocos de construção de nossas realidades pessoais foram coloridos de forma inapagável.
A maneira como vivemos e trabalhamos juntos e nos vemos como cidadãos comuns: tudo significa algo diferente na era viral e com efeitos potencialmente traumáticos.
Todas as pandemias acabam, no entanto. E esta vai acabar. Mas esquecer o trauma, seguir em frente e não se importar com isso, não vai ajudar. Seria um desserviço à história e às nossas próprias mentes. Talvez para o futuro também.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.