Por: BBC News
Prestes a completar 32 anos, a biomédica Jaqueline Goes de Jesus ainda não se sente 100% confortável com os holofotes que iluminaram sua carreira nos últimos meses.
Graduada pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e doutora em patologia humana e experimental pela Universidade Federal da Bahia, a pesquisadora integra o time de especialistas que fez o sequenciamento genômico do primeiro caso de covid-19 detectado no Brasil em apenas 48 horas, um recorde que só foi igualado pelo Instituto Pasteur, na França.
O projeto, que ganhou destaque nacional e internacional, contou com uma parceria entre o Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto Adolfo Lutz, também na capital paulista.
Dali em diante, a vida de Goes de Jesus virou de cabeça pra baixo: ela foi homenageada na Assembleia Legislativa da Bahia, se tornou personagem da Turma da Mônica e, mais recentemente, virou até boneca Barbie, numa linha produzida para celebrar mulheres que estiveram na linha de frente do combate à covid-19.
“Tudo isso ainda é muito estranho. Eu sou apenas uma cientista, que faço parte de um grupo de pesquisa, e às vezes sinto que as homenagens ficam muito direcionadas só para mim”, diz a biomédica.
Mas os colegas de laboratório, como a cientista Ester Sabino, a convenceram sobre a importância de assumir esse papel de relevância.
“Com o tempo, percebi que represento outras questões que vão além da ciência. Eu sou mulher, nordestina, negra e ocupo uma posição de destaque que dificilmente vemos no Brasil”, analisa.
Goes de Jesus espera que seu trabalho possa servir de exemplo e inspiração para as futuras gerações de pesquisadores brasileiros.
“Eu não tive referências científicas na minha infância. E jamais pensei que, fazendo graduação em biomedicina, poderia ser cientista”, conta.
“Isso é muito grave, porque não damos oportunidades para as pessoas serem aquilo que elas desejam de verdade”, completa.
A biomédica também chama atenção para o pouco investimento em ciência no Brasil e como isso impactou não apenas a condução da pandemia atual, mas estimula a ida de jovens pesquisadores para o exterior — ela própria foi recentemente para o Reino Unido, onde continua a fazer estudos com vírus.
“Para fazer ciência no Brasil, a gente tem que se esforçar quatro vezes mais”, lamenta.
Nessa entrevista exclusiva à BBC News Brasil, Goes de Jesus ainda falou sobre o estágio da pandemia de covid-19 no país e mostrou preocupação com o relaxamento nas medidas restritivas em várias cidades.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Antes de 2020, a senhora já havia trabalhado e fazia pesquisas com o HIV e com os agentes infecciosos por trás de dengue e zika. O que mudou em seu trabalho com a chegada do Sars-CoV-2?
Jaqueline Goes de Jesus – A mudança foi muito mais no quesito de reconhecimento do nosso trabalho do que no trabalho em si. É óbvio que a demanda aumentou muito.
O Brasil, apesar de não ter ficado entre os primeiros no número de genomas do coronavírus sequenciados, sem dúvidas foi o país que mais trouxe avanços na América Latina. Isso tanto pelo trabalho do nosso grupo quanto de outras equipes que trabalham com isso. A gente também tem a FioCruz e os laboratórios de saúde pública fazendo essa vigilância genômica.
Eu diria que nós tivemos um reconhecimento maior no âmbito social e político. E talvez isso veio à tona para a população, que pode finalmente conhecer o trabalho de um cientista. Isso abre as portas para uma série de outras discussões que eram e são extremamente necessárias, no sentido do reconhecimento da ciência.
BBC News Brasil – Numa perspectiva mais geral, a pandemia exigiu respostas rápidas para problemas muito complexos. Como a senhora vê a transformação da ciência durante esses últimos meses?
Goes de Jesus – A pandemia trouxe um senso coletivo muito maior para a área da ciência. Eu costumo dizer que na ciência a gente tem como único produto, ou um dos principais, a publicação científica. É ali que você resume seu projeto, seu trabalho e o desenvolvimento de uma linha de pesquisa.
Durante a pandemia, houve um compartilhamento maior desses resultados, com uma aceleração na quantidade de publicações e do índice de produtividade dos pesquisadores. Em grande parte dos países, os grupos conseguiram colaborar mais, mesmo que de maneira informal. O fato de muitas pesquisas sobre o coronavírus serem desenvolvidas e publicadas faz com que exista uma aceleração do conhecimento a respeito do vírus e da doença. E isso contribui, já que a gente utiliza esses trabalhos para basear as ações necessárias para conter o problema.
Eu ainda acho que nós precisamos avançar muito mais nesse sentido. É urgente trazer novos conhecimentos. E, muitas vezes, essa urgência não é compatível com o tempo que uma revista leva para publicar o artigo.
Eu passei por essa situação quando nós fomos divulgar o sequenciamento dos primeiros casos de covid-19 no Brasil. Naquele momento, essa informação era muito importante e não podíamos esperar a publicação científica completa para revelar esses dados.
Mas, posteriormente, nós também tivemos uma dificuldade enorme em publicar o trabalho numa grande revista, com um alto fator de impacto, porque aquela informação já não era mais uma novidade, não havia uma exclusividade nela. Isso atrapalha um pouco a vida do cientista e talvez precisemos pensar nessa velocidade com que os conhecimentos são gerados e divulgados.
BBC News Brasil –Mas a senhora acha que é possível aliar o melhor dos dois mundos? Ou seja, manter o processo rigoroso da publicação científica, com revisão dos dados por especialistas independentes, e mesmo assim acelerar esse processo?
Goes de Jesus – Sim. Sou uma jovem pesquisadora e tenho recebido muitos trabalhos para fazer essa revisão. Quando nós abrimos esse leque para novos cientistas, que nunca tinham sido convidados para realizar esse trabalho, aumentamos o número de revisores e conseguimos ampliar a velocidade do processo.
A pandemia trouxe um novo contexto e é necessário que se revejam essas questões. Muitos trabalhos acabam esperando meses e meses para serem rejeitados ou publicados. O pesquisador perde todo esse tempo para a revista dar um parecer. Talvez a pandemia traga isso de legado e exponha a necessidade de abrir o universo da revisão por pares e trazer um pouco mais de celeridade ao processo.
BBC News Brasil – Como foi o trabalho de receber a amostra do primeiro caso de covid-19 no Brasil e fazer o sequenciamento genético em poucas horas?
Goes de Jesus – Nós realmente fizemos o sequenciamento num tempo muito curto, mas isso não aconteceu porque a nossa equipe era hiper, master, ultra competente. Não que todos os pesquisadores não fossem competentes, claro, mas fazer tudo em 48 horas refletiu, na verdade, o processo de preparação que fizemos para que isso fosse possível.
Nós já tínhamos montado toda a estrutura para que, quando o primeiro caso fosse confirmado, nós já tivéssemos os equipamentos e os reagentes prontos no laboratório. Ou seja, as 48 horas refletem, na verdade, dois meses de preparação e toda uma cadeia de trabalho e treinamento.
Eu particularmente já fazia sequenciamentos desde 2016, com o vírus zika. Meus colegas de laboratório também já tinham essa experiência. E a gente manteve a parceria com o Laboratório Estratégico do Instituto Adolfo Lutz, por conta de um projeto anterior que eu desenvolvia com dengue.
Nós estreitamos os laços e, a partir daí, surgiu a oportunidade de fazer o genoma do Sars-CoV-2. Então a gente já tinha se organizado antes, junto com o pessoal do Adolfo Lutz, e sabíamos que a possibilidade de o primeiro caso ser detectado em São Paulo era grande. Quando isso efetivamente aconteceu, colocamos a mão na massa e realizamos todo o processo laboratorial.
Contamos também com o apoio dos epidemiologistas e bioinformatas do Reino Unido. Temos um contato muito próximo com eles e todo esse processo de montagem do genoma e publicação aconteceu em conjunto. Meu rostinho ficou conhecido por uma questão de facilidade de comunicação, mas existe uma equipe muito grande por trás de tudo.
Com o sequenciamento dos primeiros casos e a importância disso para a saúde pública, veio a necessidade de fazer a vigilância genômica, que é o monitoramento dos novos casos, para entender se há a introdução ou a emergência de novas variantes, como o vírus está se dispersando, quais as medidas tomadas e como fazer o controle da transmissão viral.
BBC News Brasil – Esses primeiros casos são simbólicos e, como a senhora relatou, eles mostram esse preparo e organização de toda a equipe. Mas como o trabalho de vocês se desenvolveu a partir dali?
Goes de Jesus – Os primeiros casos foram feitos em parceria com o Instituto Adolfo Lutz. Depois desse primeiro momento, dividimos o grupo e parte do laboratório continuou com o sequenciamento genético, inclusive implementando novas tecnologias com capacidade de processamento maior.
Enquanto isso, o grupo da Dra. Ester Sabino, do qual eu, a Ingra Morales, a Flávia Salles e a Érika Manuli fazemos parte, deu continuidade aos casos que estavam chegando a pedido da Secretaria de Laboratórios Públicos do Ministério da Saúde, que naquela época era coordenada pelo Dr. Julio Croda.
Então a gente tinha essa demanda específica. O Instituto Adolfo Lutz ficou com a demanda estadual e nós, no Instituto de Medicina Tropical da USP, continuamos a fazer o sequenciamento genético para tentar trazer o máximo de informações. E foi assim que conseguimos publicar o primeiro artigo de grande porte, na revista Science em julho do ano passado. Ali mostramos a geração de quase 500 novos genomas, analisados entre março e junho de 2020.
Conseguimos medir também o impacto das várias medidas que haviam sido tomadas pelo Brasil, ou pelos diferentes Estados. Até porque a gente não teve uma ação unificada para a implementação das medidas não-farmacológicas de mitigação da pandemia. E as medidas adotadas em alguns lugares estavam tendo impacto significativo na transmissão do coronavírus em diferentes centros.
BBC News Brasil – O Brasil vive um problema de baixo investimento em ciência, com cortes significativos nas verbas nas últimas décadas. A senhora acredita que a história da pandemia poderia ter sido diferente no país se tivéssemos mais investimento na pesquisa e no desenvolvimento?
Goes de Jesus – Com certeza. Acho que temos uma questão ideológica que envolve o investimento em ciência. Isso acontece em qualquer país, e no Brasil não é diferente. Quando existe um alinhamento governamental que entende que ciência é extremamente importante e faz investimentos nela, a gente já tem o primeiro passo.
Se o governo investe na ciência, a probabilidade de ele seguir as orientações do que a ciência traz como resposta é muito maior. E aqui não estou falando só da saúde, mas também da área econômica, social, de infraestrutura…
E o país consegue ter esse retorno do investimento, porque de fato temos um aumento do conhecimento. Nesses casos, o governo entende aqueles resultados obtidos através da pesquisa e implementa isso na forma de políticas públicas e de novas diretrizes, baseadas justamente em ciência.
Se o Brasil tivesse investido muito em ciência, ou pelo menos um pouquinho mais, é provável que teríamos um maior alinhamento governamental. E aqui não estou falando apenas da esfera federal, mas também de Estados e municípios.
Esse maior investimento faria com que tivéssemos um retorno científico, no sentido de entender melhor o que está acontecendo ou de fazer pesquisas para encontrar as respostas. A partir desse novo conhecimento, poderiam ser implementadas medidas para reduzir a transmissão do vírus e, na cadeia dos resultados, a gente teria obviamente um impacto muito menor da pandemia na saúde dos brasileiros.
Eu sou uma defensora nata da ciência, não poderia ser diferente. Mas existe um raciocínio lógico por trás disso. A gente sabe que os países mais desenvolvidos são aqueles que apostam e investem na ciência.
E o Brasil ainda não conseguiu encontrar esse casamento entre ciência e ações governamentais, seja do ponto de vista de investimento ou de entender aquelas informações e como implementá-las por meio de diretrizes, campanhas e ações.
BBC News Brasil – Um fenômeno relacionado a esse baixo investimento em ciência é a chamada “fuga de cérebros”, em que os cientistas brasileiros saem do país e vão para a Europa ou os Estados Unidos. A senhora, inclusive, se mudou recentemente para o Reino Unido. É possível ser cientista no Brasil ou, para continuar na área, é preciso ir para o exterior?
Goes de Jesus – A fuga de cérebros é, de fato, um fenômeno muito forte. Grande parte dos pesquisadores que eu conheço e que tiveram oportunidade de estudar fora, em países onde existe um investimento maior em ciência, fizeram isso. Para fazer ciência no Brasil, a gente tem que se esforçar quatro vezes mais.
E aí, quando a gente sai do Brasil, seja para uma temporada ou para realmente estabelecer residência, percebemos a diferença na nossa produtividade. Produzimos muito mais quando estamos fora por conta do investimento em recursos.
É possível, sim, fazer ciência no Brasil. Eu faço isso há dez anos, desde a iniciação científica. Mas não é fácil, e a gente tem que driblar uma série de dificuldades. Os reagentes não chegam no prazo esperado, não existe legislação, não temos um fluxo de logística, e tudo isso impede que o pesquisador tenha uma eficiência maior em seu trabalho.
Um indivíduo que fez mestrado e doutorado passou por uma graduação e ainda dedicou seis anos de sua vida para chegar num nível de pesquisador, onde ele consegue ter os próprios recursos para trabalhar. É um investimento muito caro, de tempo e de dinheiro.
E aí, quando temos esses doutores, que poderiam trazer muito resultado e conhecimento para nosso país, eles não são remunerados da forma correta e não têm oportunidades nas universidades. O Brasil ainda abarca a ciência só no âmbito das universidades públicas estaduais e federais. Nós temos pouquíssimos centros privados que fazem pesquisa.
Tudo isso contribui para que o indivíduo procure oportunidades fora do país, até porque isso não falta. Eu tenho um alerta configurado no meu e-mail e, todos os dias, eu recebo três, quatro, cinco vagas dentro da minha área no exterior. E no Brasil a gente fica competindo por uma vaga…
BBC News Brasil – Essas dificuldades que a senhora descreveu ajudam a desenvolver uma versatilidade e uma capacidade de adaptação no cientista brasileiro? Essas habilidades são valorizadas no exterior?
Goes de Jesus – O Brasil é uma boa escola para isso. Eu não gosto de romantizar o sofrimento, seja ele qual for. Mas, uma vez que você passa por um processo de formação no Brasil, em que é preciso driblar tantas dificuldades e dar o famoso jeitinho, nós conseguimos resolver situações extremamente inusitadas.
Fora do Brasil, principalmente nos países que têm investimentos em ciência, isso não acontece. Daí, quando você se encontra numa dificuldade no exterior, é muito mais fácil de manejar aquela situação, até porque ela é costumeira no Brasil. É nossa rotina.
Então aqui no Reino Unido, quando acontece uma situação diferente, os pesquisadores nativos ficam um pouco perdidos. E a gente já está tentando resolver, ajeita de um lado, ajeita de outro, e conseguimos trazer soluções que não são obviamente as melhores, mas pelo menos resolvem aquilo por um período de tempo.
BBC News Brasil – No início da entrevista, falávamos sobre como a pandemia ajudou de alguma maneira a popularizar a ciência. E a senhora é parte desse processo e virou até personagem da Turma da Mônica e boneca Barbie. Como foi participar desses projetos e aliar a pesquisa a esse universo pop?
Goes de Jesus – Tudo isso ainda é muito estranho. Eu sou apenas uma cientista, que faço parte de um grupo de pesquisa, e às vezes sinto que as homenagens ficam muito direcionadas só para mim
Mas teve uma coisa que ouvi de alguns colegas que me ajudou a entender um pouco mais essa situação e ver algum sentido nisso tudo. Eu represento outras questões que não apenas a ciência. E essa representatividade tem um apelo muito grande no Brasil. Com o tempo, percebi que represento outras questões que vão além da ciência. Eu sou mulher, nordestina, negra e ocupo uma posição de destaque que dificilmente vemos no Brasil. Agora, talvez, isso é mais discutido e conseguimos trazer mais pessoas com essas características para os holofotes.
Mas, durante toda a minha vida, eu sempre vi homens brancos de meia idade sendo responsáveis por falar na mídia e por representar grupos que, talvez, envolvessem pessoas diversas. Mas era sempre aquela mesma figura da pessoa considerada mais apropriada para aparecer.
Trazer a Dra. Jaqueline Goes para esse universo pop também é uma quebra de paradigma. É você mostrar a visão de que o mundo mudou e nós precisamos acompanhar essa mudança. Nós temos pesquisadoras jovens, negras, mulheres que ocupam posição de destaque também, mas que nunca foram vistas dessa forma. É importante, porque trazemos representatividade.
Eu recebo muitas mensagens de escolas pedindo para que eu faça palestras ou participe de um bate-papo com as crianças. Muitas vezes eu não consigo dar conta de tudo, mas eu faço um esforço muito grande para comparecer a esses eventos online. Porque são as crianças de hoje, inspiradas nessa representatividade, que vão mudar o futuro. A gente precisa investir nisso.
Eu não tive referências científicas na minha infância. As minhas primeiras referências só vieram na época do mestrado, quando eu já estava graduada. Tudo isso agora é diferente. E jamais pensei que, fazendo graduação em biomedicina, poderia ser cientista. Isso é muito grave, porque não damos oportunidades para as pessoas serem aquilo que elas desejam de verdade. Às vezes, é só o que coube para ela naquele momento.
Calhou de eu cair na ciência e gostar, mas nunca foi a minha pretensão. E também acho que essa não era a pretensão de muitos dos meus colegas. Trazer isso para o universo pop, inclusive com outras cientistas, como foi o caso da homenagem com a Barbie, significa que nós carregamos essa representatividade. A criança olha para uma boneca e pensa que pode ser como ela. Isso é algo diferente do que eu vi durante toda a minha vida.
No início, eu não queria aceitar, ficava muito com essa coisa de que trabalhamos em grupo e todos deveriam receber a homenagem. A minha ideia mudou quando ouvi da minha supervisora, a Dra. Ester Sabino, uma pessoa muito sábia, que era importante eu trazer essas outras representatividades extremamente urgentes para nossa sociedade.
BBC News Brasil – Os cientistas estão acostumados a trocar ideias e informações com os colegas, numa linguagem acadêmica e, muitas vezes, pouco acessível. Como dialogar com o público geral?
Goes de Jesus – Vou falar algo que nunca comentei em entrevistas. Essa semana, eu estava refletindo com um amigo e cheguei à conclusão de que isso faz parte da minha trajetória. Eu sou professora. E, enquanto professora, preciso pegar algo que é muito complexo e trazer para o universo do estudante, que está aprendendo sobre aquilo pela primeira vez.
Comecei a dar aula com 16 anos em uma escola infantil. A partir dessa experiência de ensinar para as crianças, depois passar pela graduação dentro da universidade, de ser professora universitária e participar de um projeto de aulas online, a gente vai desenvolvendo essas habilidades.
Precisamos pegar algo complexo e passar para diferentes públicos. Para isso, precisamos de experiência e confiança, além de usar ferramentas como as comparações, falar de maneira calma… Isso facilita muito quando falamos de ciência para a população. Até porque precisamos trazer algo que seja da realidade daqueles indivíduos.
Não adianta ir pra mídia e usar termos técnicos. Precisamos destrinchar aquele conhecimento e transformá-lo em algo que seja fácil para o público degustar. No momento em que se gosta daquilo, fica fácil buscar mais informações. E isso aconteceu durante a pandemia. Eu vi as pessoas procurando por ciência e por conhecimento como buscavam por resultados de jogos de futebol. Ainda não é o ideal, mas é muito gostoso de ver isso acontecer.
BBC News Brasil – Em relação à pandemia, a senhora já vê alguma luz no fim do túnel? Existe alguma perspectiva de fim da crise sanitária, quando pensamos na realidade brasileira?
Goes de Jesus – Eu vivo uma realidade no Reino Unido que é completamente incompatível com a brasileira. Aqui, a vacinação avançou e temos praticamente 80% da população completamente imunizada. Isso muda a forma como a gente vive.
Falando do Brasil, eu ainda tenho um receio pelo surgimento de novas variantes. Esse é um grande receio, aliás. Então, sempre que as pessoas perguntam sobre perspectivas, eu respondo que é muito complicado falar de previsão. Como cientista que entende o processo de disseminação viral e o surgimento de novas variantes, eu pensaria [num fim para a pandemia] em 2024. E sei que não é uma previsão muito agradável. E tenho até receio de falar isso para as pessoas, para que não seja usado fora de contexto ou recebido como como grande verdade.
Sobre o modo como os brasileiros estão levando a pandemia, abrindo tudo sem que as pessoas estejam completamente vacinadas, é muito complicado. Nós temos grandes centros com uma boa porcentagem da população com as duas doses, mas, em outros lugares, estamos longe de alcançar isso. É difícil dizer que, em 2022, já estaremos livres da pandemia, com todo mundo vacinado.
Isso porque nós temos a possibilidade de surgirem novas variantes e o Brasil já mostrou que é capaz de fazer isso. Tivemos a P.1 [a atual Gama] e diversas outras que se desenvolveram no país. E esse é o grande empecilho para que estejamos tranquilos no ano que vem.
Enquanto brasileira, se eu pudesse dizer o que precisa ser feito agora seria continuar com as restrições, deixar em funcionamento apenas o que é estritamente necessário, não incentivar eventos e aglomerações e acelerar a vacinação.
Precisamos investir na compra de vacinas. A gente sabe que tem como comprar mais doses se houver uma intenção real do governo de fazer isso. E ouvimos o presidente falar que vai reduzir o orçamento para compra de vacinas em tantos por cento no ano que vem. Não! A gente precisa aumentar esse percentual, não reduzi-lo. A epidemia não acabou.
A gente volta mais uma vez para a questão dos governos que investem e acreditam na ciência. É algo que se retroalimenta. Infelizmente, não temos isso no Brasil.
É complicado fazer previsões sobre o fim da pandemia, mas eu diria no final de 2023, início de 2024, se não tivermos novas variantes surgindo com tanta velocidade como temos observado.
BBC News Brasil – Quais foram os principais erros cometidos na condução da pandemia no Brasil e o que podemos aprender com eles?
Goes de Jesus – Acho que a gente errou em não ouvir a ciência. Enquanto cientistas, trouxemos informações e conhecimentos de forma muito rápida para o governo e a sociedade brasileira. No início da pandemia, eu me recordo de ter sido convocada, junto de outros pesquisadores, para dar direcionamento em relação ao que deveria ser feito no país.
A minha sugestão era que nós fizéssemos um controle maior nos aeroportos e fechássemos as fronteiras. Assim, a gente poderia ao menos conter a introdução de novas variantes do vírus, de modo a mitigar aquilo que já tinha entrado no Brasil com os primeiros casos.
Infelizmente, nada disso aconteceu. Essa reunião foi final de março de 2020. Pouquíssimas das nossas recomendações foram acatadas. Depois disso, trouxemos o estudo na Science em julho falando das medidas não-farmacológicas e o impacto que elas tiveram na redução da pandemia. Ainda assim, vimos muitas cidades seguindo o caminho contrário, de não estabelecer a quarentena e o lockdown, de não preconizar o uso de máscara, e com governantes dizendo que tudo era uma baboseira.
Infelizmente, por mais que nossos governantes não acreditassem ou tivessem uma opinião contrária, a figura deles como exemplo era necessária para que a gente tivesse outro curso na pandemia. Erramos em não ouvir a ciência.
E continuamos a errar. O Brasil está fazendo uma série de reaberturas que não eram para acontecer neste momento. Não sei se nós aprendemos com esses erros ainda.
Mas também vejo pelo lado positivo, em que aprendemos muito sobre prevenção de epidemias, disseminação de doenças por via respiratória, sobre questões de higiene… Se a gente começar a olhar outras doenças relacionadas à falta de higiene, veremos que a prevenção para covid-19 ajudou a evitar outras doenças.
E, agora, boa parte da população entende que, quando temos recursos, interesses políticos, econômicos e sociais no desenvolvimento de uma vacina, ela pode ficar pronta em tempo recorde. O mundo inteiro se debruçou no desenvolvimento de vacinas contra a covid-19 e temos várias delas já aprovadas.
BBC News Brasil – Pensando em representatividade e inspiração, como uma criança ou um jovem pode virar cientista no futuro? Qual caminho devem seguir?
Goes de Jesus – Essa é uma pergunta difícil. As pessoas têm uma ideia de que cientista só trabalha na saúde. E eu gosto de lembrar das outras áreas, inclusive as ciências sociais. Se tornar cientista, para mim, é algo que vem de dentro. Você precisa ter um instinto curioso.
As crianças são cientistas por natureza. Elas trazem essa curiosidade e querem descobrir o ambiente e tudo ao redor. Para aqueles jovens que continuam com desejo de explicar os fenômenos sociais, políticos, de saúde e da área das exatas, o passo principal é fazer uma graduação em algo que agrade. Se você gosta de engenharia, vai fazer. E, dentro dessa área, procure grupos de estudo que trabalham com um tópico de seu interesse.
Não adianta se envolver com áreas nas quais você não tem aptidão ou afinidade. Tem que gostar. Se não, não flui. Ser cientista não é uma posição em que você trabalha das 8 às 16 horas e, no outro dia, aparecem outras demandas. Você vive a pesquisa. Às vezes você está tomando banho e se lembra de algo que poderia ter feito no experimento e não fez. Ou sonha com o experimento que fará no dia seguinte.
Você é sempre cientista, seja no laboratório, em casa ou numa festa com os amigos. Está sempre pensando e buscando entender os fenômenos. Primeiro, é preciso ser curioso. Depois, seguir a carreira, fazer graduação, entrar em grupos de pesquisa para mestrado e doutorado. E, claro, ter sempre essa vontade de explicar as coisas dentro de si.