Por: BBC News
O aumento generalizado de preços fez desaparecer a carne da mesa dos brasileiros e levou muita gente a fazer pesquisa de preço no supermercado.
O impacto da inflação alta, contudo, vai muito além da cozinha.
Com o aumento dos custos, algumas famílias se veem sem alternativa a não ser cancelar o plano de saúde. Outras têm organizado compras coletivas para economizar nos gastos com material escolar dos filhos e muitas têm evitado sair de casa, seja por conta dos preços salgados dos restaurantes ou o custo do combustível.
Essas são algumas das histórias que a reportagem da BBC News Brasil ouviu de brasileiros em diferentes regiões e dão dimensão do que está por trás das estatísticas — não só de inflação, mas também de desemprego, endividamento e comprometimento da renda. Cenário que não deve mudar consideravelmente em 2022, dada a expectativa de inflação ainda alta (mesmo que desacelerando) e estagnação da economia.
Da casa própria para o aluguel (e R$ 700 de economia na gasolina)
Os mais prejudicados são os mais pobres, mas a classe média também sente o impacto — e cada vez mais. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que calcula a inflação por faixa de renda, mostram que esse foi o grupo que enfrentou o índice mais elevado de inflação em 2021, entre 10,26% (média) e 10,4% (média-baixa).
A pesquisa do Ipea apontou que as principais pressões para os grupos de renda mais alta vieram do grupo transportes, que registrou alta de 47,5% da gasolina e 62,2% do etanol. Para efeito de comparação, para as famílias de baixa renda a pressão maior veio do grupo habitação, afetado especialmente pelo reajuste de 21,2% da energia elétrica e de 37% do gás de botijão.
Para a professora Juliete Castro Oliveira, a escalada do preço da gasolina foi um dos fatores que pesaram para que ela tomasse uma decisão que mudaria completamente a dinâmica do dia a dia da família: colocar sua casa própria para alugar e se mudar para mais perto do trabalho.
Quando casou, há cerca de 10 anos, ela deu entrada no financiamento de um imóvel no bairro José Walter, na periferia de Fortaleza, e estava acostumada a se deslocar para áreas mais próximas do centro por conta do trabalho — até que veio a pandemia.
“No terceiro mês de pandemia, fui olhar minhas contas e vi que estava sobrando dinheiro. Pensei: ‘Só pode ter alguma coisa errada!’. Fui refazer, mas era aquilo mesmo.”
A redução dos gastos com combustível tinha feito uma diferença grande no orçamento, assim como o abatimento que conseguira na mensalidade da escola do filho, de quatro anos, e a suspensão da cobrança das parcelas do financiamento da casa da mãe, que ela paga.
“Nunca tinha parado pra calcular, mas ali percebi que, trabalhando em três turnos, eu chegava a me deslocar 43 km em um dia só dentro da cidade”, conta Oliveira.
Quando as aulas presenciais voltaram e a gasolina passou dos R$ 6 por litro, ela não pensou duas vezes quando uma colega falou sobre a oportunidade de alugar um imóvel próximo a uma das escolas em que dá aula.
“E ainda foi num dia em que eu gastei mais de uma hora pra chegar (no trabalho), estava estressada”, recorda bem-humorada a professora, que diz que o espaço maior do imóvel novo e a perspectiva de ganho em qualidade de vida também contaram na decisão do casal.
Passados cerca de dois meses, ela não se arrepende. A diferença entre o gasto de combustível antes e depois da mudança é de impressionantes R$ 700, que paga parte do aluguel na casa nova.
A renda do aluguel do imóvel próprio tem sido usada para pagar as parcelas do financiamento.
“No fim do mês, vi que compensou. Agora consigo me alimentar mais em casa, também é um gasto a menos, e tem a questão da qualidade de vida”, ela destaca.
Mães ‘do desapego’
Também na tentativa de cortar gastos, ela e o marido têm se revezado para deixar e buscar o filho na escola. Isso porque valor do transporte escolar, impactado pela alta dos combustíveis, foi outra despesa que deu um salto. “Está quase a mensalidade da escola.”
Às famílias com filhos, aliás, não faltam estratégias para economizar diante da alta de preços e do aperto na renda. Oliveira cita os grupos de mães que se reúnem nas redes sociais para vender e trocar produtos que não usam mais — um hábito que já se espalhou pelas diversas regiões do país.
Em Brasília, a bióloga Sula Salani soube das “mães do desapego” quando estava grávida de seu filho, um pouco antes do início da pandemia. Hoje, não faz uma compra sem antes consultar pelo menos três grupos do WhatsApp em que centenas de mães compram, vendem e doam produtos novos e usados.
Uma delas chegou a organizar um clube de compras informal, em que as mães se reúnem para comprar em grandes quantidades, em busca de descontos, e racham o frete. “Já comprei um sapatinho por R$ 40 que geralmente custa mais de R$ 100. A gente economiza com material escolar, roupa, material de limpeza — foi uma das formas que a gente encontrou pra driblar (os preços altos).”
Do plano de saúde para os postos de saúde
Com menos renda disponível e diante do aumento expressivo dos gastos com transporte, energia e alimentação, para conseguir manter os gastos básicos muitas famílias se viram obrigadas a cortar despesas — e, muitas vezes, aquelas que não eram supérfluas.
Uma pesquisa realizada em julho do ano passado pelo Instituto Locomotiva mostrou que viagens de avião e refeições em restaurantes foram os itens que os brasileiros mais tiveram de abrir mão por conta da crise. Em terceiro lugar veio o plano de saúde: cerca de 1 em cada 4 entrevistados (26%) que faziam uso do serviço afirmou tê-lo cancelado.
Residente em São Paulo, Andréa Carvalho, de 55 anos, se viu nessa situação recentemente, quando a mensalidade do seu plano chegou a R$ 1,6 mil.
“O valor subiu exageradamente pra minha idade. E não é um plano de saúde ‘chique’, é básico.”
Agora, ela procura os postos de saúde quando precisa de atendimento e de medicamentos, outro item que tem pesado bastante no orçamento.
“Mas muitas vezes não consigo nem encontrar medicamentos simples, como dramin e paracetamol, nos postos — estão em falta”, acrescenta.
Em paralelo, a mudança de hábitos para ela também chegou à cozinha — e não apenas à sua. Carvalho faz parte de uma ONG que doa marmitas e já teve de mudar o cardápio algumas vezes por causa dos preços dos ingredientes.
“A princípio foi a carne, mas também os outros insumos: arroz, feijão, couve — uma verdura que deveria ser mais barata —, está tudo muito caro”, diz ela.
“Então nós tivemos que mudar novamente o cardápio. A gente começou fazendo picadinho, depois fizemos feijoada… Agora a gente vai tentar fazer um estrogonofe de frango, enfim, o que a gente conseguir.”
Alimentação e saúde também têm pesado no orçamento da aposentada Alzira de Souza, de 65 anos, que também mora em São Paulo. Para ela, uma das alternativas tem sido cortar do lazer. Com o aumento do preço dos combustíveis e do transporte por aplicativo, ela sai cada vez menos de casa.
“Não costumo sair mais para fazer refeições fora. Antes eu fazia isso bastante; agora muito raramente eu faço, porque os preços nos restaurantes também estão muito caros”, conta.
Como síndica do prédio em que mora, ela também viu os custos darem um salto no último ano. As despesas com itens como água, luz e gás mais que dobraram. A última assembleia de moradores foi difícil: “Ano passado não fizemos reajuste nenhum por conta da pandemia, que estava muito forte, havia muitas pessoas desempregadas, mas neste ano a gente não conseguiu deixar sem aumento”.
Muita conta, pouca renda
A taxa de desemprego vem caindo consistentemente desde maio, tendo recuado de 14,7% para 12,1% no trimestre encerrado em outubro, o dado mais recente da Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE.
Essa redução, contudo, vem se dando pela geração de empregos mais precários, que pagam salários menores. O cenário fica visível quando se olha o indicador de renda da mesma pesquisa: no trimestre encerrado em outubro, o rendimento médio de quem estava empregado era 11,1% menor do que o registrado no mesmo período de 2020.
Essa dinâmica vem comprimindo a renda disponível das famílias, como mostra um outro indicador, desta vez do Banco Central. O comprometimento de renda das famílias atingiu em setembro (dado mais recente) seu nível máximo desde o início da série, em 2005. Cerca de 26,8% de todo o rendimento das famílias — aí incluído não apenas o do trabalho, mas de outras fontes e também benefícios como o emergencial — foi usado para pagamento de dívidas, entre empréstimos, financiamentos e despesas com cartão de crédito.