Por: BBC News
Em um esforço para lidar com os escândalos sexuais que estão abalando a Igreja Católica, o papa Francisco convocou um encontro extraordinário de bispos em Roma. A convocação ocorre após sua recente e inesperada admissão de que padres exploraram freiras como “escravas sexuais” em um convento na França.
O pontífice decidiu convocar essa conferência global após discussões com o chamado grupo C9. Esse é o grupo de nove cardeais conselheiros, que foram apontados logo depois que Francisco foi eleito chefe da Igreja Católica.
O papa está sob pressão para exercer um papel de liderança e encontrar soluções viáveis para essa que é a maior crise já enfrentada pela igreja moderna.
Histórias de abuso sexual estão aparecendo em todas as regiões do mundo. E a igreja tem sido acusada de acobertar crimes cometidos por padres, esfacelando sua autoridade moral.
O papa Francisco também precisa enfrentar atitudes e práticas que permitiram que essa cultura de abuso prosperasse. O tamanho desse desafio pode ser esmagador.
O encontro, que vai contar com a presença dos responsáveis por todas as conferências nacionais de bispos, de mais de 130 países, é apenas o início de uma tentativa de combater uma doença que está envenenando a igreja desde, pelo menos, a década de 1980.
Quando Jason Berry, um repórter no Estado de Louisiana, nos Estados Unidos, começou a investigar a história de um padre abusador chamado Gilbert Gauthe, não imaginou que seu trabalho daria início a um escândalo internacional, que segue ativo mais de 30 anos depois.
O trabalho de Berry acabou se transformando no livro Lead Us Not Into Temptation (Não nos deixe cair em tentação, em tradução livre para o português), baseado nas ações legais tomadas pela igreja contra múltiplas pessoas que fizeram acusações, no final dos anos 80.
Em 2002, o trabalho de Berry foi seguido por uma investigação do jornal americano Boston Globe. O diário revelou uma rede ainda mais extensa de abusos cometidos por padres e tentativas da igreja de acobertá-los. Os autores da série de reportagens ganharam o prestigioso Prêmio Pulitzer e o trabalho inspirou o filme Spotlight (vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2016).
O escândalo continuou a crescer. Seis das 8 dioceses católicas do Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, foram alvo de escrutínio público no ano passado. O procurador do Estado, Josh Shapiro, intimou e revisou meio milhão de documentos internos. Dezenas de testemunhas forneceram evidências e alguns clérigos se declararam culpados. O relatório feito por Shapiro, publicado em dezembro, foi devastador.
“Mais de mil crianças vítimas de abusos foram identificadas a partir dos próprios registros da igreja”, escreveu Shapiro, com “acusações contra mais de 300 padres predadores”.
O relatório, que tem mais de mil páginas, cobre um período de 70 anos. E os exemplos são horríveis. Na diocese de Scranton, um padre estuprou uma menina, que acabou engravidando. Ele, então, a forçou a abortar o bebê. O padre superior escreveu uma carta sobre o caso:
“Esse é um momento muito difícil na sua vida e eu percebo o quanto você está chateado. Eu compartilho da sua aflição.” A carta não era endereçada à vítima, mas ao padre.
Em outra diocese, um padre visitou uma menina de nove anos no hospital depois que ela havia passado por uma tonsilectomia (retirada das amígdalas) – e a estuprou. Em outro caso, um padre abusou de um menino de nove anos e depois enxaguou sua boca com água benta para “purificá-lo”.
O relatório concluiu que pedófilos puderam abusar de crianças porque a igreja escondeu suas atividades ao transferi-los para outras paróquias e não relatar seus crimes para a polícia.
Acusações de estupro
Franco Mulakkal saiu da posição de reverendo na pequena cidade de Kerala, na Índia, para bispo no norte do país. Foi preso em setembro de 2018, após ser acusado por uma freira de tê-la visitado continuamente em um convento com o objetivo de estuprá-la. O bispo, que foi removido temporariamente de suas funções religiosas, negou todas as acusações, dizendo para a imprensa que as acusações eram “sem fundamento e inventadas”.
Em uma carta escrita pela freira para suas superioras, ela afirmou que o primeiro estupro ocorreu em maio de 2014 e o último em setembro de 2016. Em janeiro, as freiras pediram que o governador de Kerala interviesse depois que representantes da igreja, segundo elas, ordenaram que as religiosas deixassem a região, em uma tentativa de acabar com o problema.
As freiras se queixam de que são exploradas porque, muitas vezes, dependem de padres e bispos para terem um lugar para morar. Assim, temem o abandono caso lutem contra clérigos abusivos.
No Malawi, onde a prevalência de HIV entre adultos é de mais de 10%, elas tornaram-se alvo de abuso pois são consideradas “puras” e menos predispostas a terem o vírus.
‘Nunca mais’
Em 2012, o governo da Austrália anunciou a criação de uma comissão encarregada de investigar respostas institucionais ao abuso infantil. As organizações envolvidas incluem centros de abrigo para jovens, escolas, clubes esportivos e artísticos, e a igreja.
A comissão concluiu que 7% dos padres católicos na Austrália haviam sido acusados de abusar de crianças entre 1950 e 2010. Em uma ordem religiosa específica, 40% das lideranças eram acusadas de ter abusado de crianças.
Chrissie Foster, mãe de duas crianças que foram abusadas por padres em Melbourne, denunciou o caso para as autoridades. Ela diz à BBC News que, em vez de ver o relato ser investigado, a família foi alvo de uma campanha de difamação. “Falavam que éramos mentirosos, que estávamos atrás de dinheiro”, conta.
“Isso é o que eles costumavam dizer para os fiéis (frequentadores da igreja). E os fiéis acreditavam. Quem acreditaria que um padre havia estuprado uma criança? Era muito mais fácil acreditar que era uma mentira, do que considerar que era verdade que padres estavam abusando de crianças”.
Em agosto de 2018, a Igreja Católica da Austrália publicou sua resposta formal à comissão. O arcebispo Mark Coleridge, presidente da Conferência dos Bispos Católicos da Austrália, disse que “muitos” clérigos, religiosos e leigos dentro da igreja no país haviam “falhado na sua obrigação de proteger e honrar a dignidade de todos, inclusive e especialmente dos mais vulneráveis, nossas crianças e jovens”.
“Unidos em uma única voz, os bispos e líderes de ordens religiosas fazem nesta manhã o juramento: ‘nunca mais'”, declarou.
‘Abuso terrível’
No verão passado, o Inquérito Britânico Independente sobre Abuso Sexual de Crianças publicou um relatório sobre duas das escolas mais prestigiadas da Igreja Católica no Reino Unido: Ampleforth College e Downside School.
De acordo com o relatório, as escolas “priorizaram os monges e suas próprias reputações em vez da proteção das crianças” e “terríveis abusos foram cometidos durante décadas contra crianças com a partir de 7 anos em Ampleforth e 11 anos em Downside”. O relatório ouviu testemunhos de vítimas que foram forçadas a ter relações sexuais com clérigos, algumas vezes na presença de colegas.
Em resumo, o relatório descobriu que “muitos abusadores não escondiam seu interesse sexual das crianças. “A falta de pudor nessas ações demonstra que havia uma cultura de aceitação de comportamentos abusivos”, falou.
Após a publicação do documento, a escola Ampleforth declarou que “o mosteiro e o colégio querem repetir seu pedido sincero de desculpas a todas as vítimas e sobreviventes de abusos”.
A escola Downside, por sua vez, expressou arrependimento semelhante, dizendo: “O mosteiro e a escola reconhecem sérios erros e falhas tanto na proteção daqueles que estavam sob nossos cuidados como na resposta às preocupações por segurança”.
Sendo uma organização religiosa com mais de 1,2 bilhão de fiéis e que está presente em praticamente todos os países do mundo, o foco agora está no papa Francisco.
Quando foi eleito, em março de 2013, o pontífice estava plenamente ciente do impacto dos escândalos de abusos cometidos por clérigos. No curso de um ano, em julho de 2014, ele se encontrou com seis vítimas de três países – Irlanda, Grã-Bretanha e Alemanha. Em uma missa privada com as vítimas, o papa ofereceu um pedido explícito de desculpas.
“Diante de Deus e seu povo, manifesto minha dor pelos pecados e graves crimes de abuso sexual que clérigos cometeram contra vocês”, disse Francisco durante sua homilia, publicada posteriormente pelo Vaticano.
“E eu humildemente peço perdão. Eu também imploro pelo seu perdão pelos pecados de omissão por parte dos líderes da igreja que não responderam adequadamente aos relatos de abuso feitos pelas famílias das vítimas e pelas próprias vítimas”.
Logo depois, o papa Francisco colocou mais oito membros na Comissão do Pontificado para a Proteção de Menores – originários da África, Oceania, Ásia e América do Sul. Mas, em seguida, houve deserções nesse grupo. As únicas duas pessoas que haviam sido vítimas de abuso de fato, Marie Collins e Peter Saunders, renunciaram.
Marie Collins, que foi molestada por um padre quando tinha 13 anos, escreveu uma carta dizendo que, embora o papa desejasse enfrentar o problema, a burocracia do Vaticano continuava obstruindo mudanças.
Depois que a comissão recomendou que todas as correspondências recebidas de vítimas e sobreviventes deveriam ser respondidas, Marie Collins descobriu que nenhuma resposta havia sido enviada de fato.
“É impossível ouvir declarações públicas a respeito da grande preocupação da igreja com aqueles que sofreram abuso e, por outro lado, assistir, em particular, a uma congregação do Vaticano se recusar a considerar as cartas (das vítimas)”, disse Collins.
“(Isso) é um reflexo de como essa crise tem sido tratada na igreja: com belas palavras em público e ações contrárias a portas fechadas”.
O papa Francisco decidiu abrir as portas da igreja para tratar desse assunto, convocando uma cúpula sem precedentes para abordar a questão. Por outro lado, Francisco também buscou reduzir as expectativas com o encontro, dizendo que uma conferência de três dias é apenas o início de uma conversa.
Também houve quem argumentasse que o pontífice deveria decretar regras que a igreja deveria seguir. Mas isso seria um desafio, já que a instituição está presente em diversos países, com culturas e sistemas jurídicos diversos.
É difícil imaginar um desafio que seja mais urgente do que esse para o papa, que tem 82 anos. Seu pontificado começou com grande entusiasmo, por Francisco ter escolhido a humildade e a compaixão em detrimento do status e da pompa da igreja.
Mas como tudo isso vai terminar? Vai depender das ações concretas que o papa vier a tomar e das regras que forem de fato implementadas para lidar com a tragédia do abuso.