Por: BBC NEWS
Quando o médico Marcos Barreto participa de congressos e conferências fora do Brasil, não é incomum que achem que ele trabalha em zonas de guerra.
Na verdade, ele chefia a unidade de queimaduras do Hospital da Restauração Governador Paulo Guerra, no Recife (PE), referência no tratamento de queimados no país.
Ali são atendidas cerca de 280 pessoas por mês, uma média de quase dez por dia. E nos 40 leitos costumam ser internados, em média, 1,1 mil pacientes por ano, diz Barreto, que atua no hospital há 47 anos, desde que era estudante de Medicina.
“No exterior, acham que (números dessa magnitude) só podem ser de queimaduras por conflito”, explica Barreto à BBC News Brasil.
“E se você me perguntar se esse número tem aumentado no Brasil, digo que sim, claro. Quanto mais pobreza, maior o número de acidentados. (…) Mas não é nada novo: é um problema histórico. Eu vejo isso há décadas. É um problema puramente social, e muito grave. Minha clientela é miserável. Eu nunca atendo rico queimado.”
Essa relação direta entre o aumento recente da pobreza e mais queimaduras ainda não consta de estatísticas oficiais recentes, mas é confirmada por especialistas e tem sido observada nos últimos meses, em particular no acesso a combustível para cozinhar de modo seguro.
Enquanto o preço do gás de cozinha acumula alta de quase 30% neste ano, 56% da população adulta brasileira viu sua renda cair desde o início da pandemia, segundo pesquisa do Unicef (braço da ONU para a infância) publicada em maio.
O resultado é que se tornaram mais comuns os relatos – e os riscos de acidentes – envolvendo pessoas que, sem conseguirem comprar gás de cozinha, passaram a preparar refeições com combustíveis alternativos, mais inflamáveis ou perigosos.
“Sempre quando aumenta o preço do gás, centros de atendimento de queimados já sabem que precisam se preparar para atender mais gente”, sobretudo em regiões vulneráveis, explica à BBC News Brasil o médico José Adorno, presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ).
Um caso recente a ganhar o noticiário foi o de Geisa Stefanini, de 32 anos, moradora de Osasco (SP), que morreu depois de ter grande parte do corpo queimado em um acidente doméstico. Seu bebê, de sete meses, sobreviveu à explosão, mas sofreu queimaduras em 18% do corpo.
Desempregada e sem dinheiro para um botijão, segundo relatos de pessoas próximas, Stefanini tinha tentado cozinhar com um fogão improvisado com tijolos, uma grelha e álcool obtido em um posto de gasolina.
2 litros de álcool em garrafa PET
Recentemente, 80% dos leitos femininos do Hospital da Restauração recifense chegaram a ser ocupados por casos como o de Geisa, informa o médico Marcos Barreto.
“O povo está indo ao posto de gasolina porque não tem R$ 100 para comprar o gás de cozinha, mas às vezes tem R$ 10 na mão. Com isso, compram 2 litros de álcool no posto, em garrafa PET, e cozinham por dois dias e meio”, explica Barreto.
“Se você fizer a conta, isso sai mais caro do que o gás, mas é o que cabe no bolso deles naquele momento. A pessoa garante que vai cozinhar hoje e amanhã. Faz um tripé com uma panelinha de álcool no meio.”
O improviso é altamente arriscado. “Você quase não enxerga o fogo azulado do álcool. Quando vai reabastecer, porque acha que o fogo acabou, ocorre o acidente.”
O álcool e a gasolina são muito voláteis e se espalham e evaporam rapidamente, explica o major Marcos Palumbo, do Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo, corporação que atendeu à ocorrência de Geisa.
“Ao evaporar, o combustível forma uma nuvem invisível. E, ao contrário de um fogão, que você desliga, não tem como cortar o suprimento do combustível: o fogo só acaba quando queimar, destruindo tudo”, detalha o major. “Por isso, nunca se deve improvisar a substituição de combustível em uma cozinha, que já está adaptada ao uso do gás.”
Mas, mesmo que sejam alertadas sobre os riscos, as pessoas se veem sem alternativas, observa Barreto. “Elas me dizem, ‘doutor, mas eu vou cozinhar com o quê?’. Já cheguei a internar três gerações da mesma família – avó, mãe e filha – por acidente na cozinha.”
Cozinhar com lenha e carvão
Como aponta Barreto, o problema não é novo. Em 2019, uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estimou que, no ano anterior, 14 milhões de famílias brasileiras (ou 20% do total) usavam lenha ou carvão para cozinhar – um aumento de 3 milhões de famílias em relação a 2016.
Ficaram, portanto, mais suscetíveis a acidentes, queimaduras ou intoxicação pela fumaça.
Outras 89 mil famílias usavam outros combustíveis para preparar alimentos, o que pode incluir o álcool.
No mundo inteiro, um relatório do Banco Mundial publicado em outubro de 2020 apontou que 2,8 bilhões de pessoas dependiam de lenha, resíduos de colheita, carvão e outros combustíveis inseguros e poluentes para cozinhar.
O prejuízo social acumulado disso, seja em danos à saúde, ao clima (pela emissão de gases do efeito estufa) e à produtividade das mulheres – as principais encarregadas do preparo de refeições – foi estimado em US$ 2,4 trilhões.
Além disso, em 2014 a ONU calculou que 4,3 milhões de pessoas morriam por ano por doenças causadas pela poluição em ambientes fechados – sobretudo por partículas e monóxido de carbono produzidos pela queima de madeira, carvão ou resíduos em fogões improvisados ou ineficientes.
A Organização Mundial da Saúde não tem estatísticas atualizadas sobre queimaduras, mas calculou, em 2018, que cerca de 180 mil pessoas morriam por ano no mundo em decorrência desse tipo de lesão, sobretudo em países de renda baixa e média, a maior parte na África e no Sul da Ásia.
No Brasil, alguns estudos estimam que haja mais de 1 milhão de casos de queimadura por ano, dos quais 2,5 mil terminam em morte. E dois terços ocorrem dentro de casa, muitas vezes envolvendo crianças.
Cerca de 90% dos atendimentos são na rede pública de saúde, evidenciando a vulnerabilidade de muitas das vítimas, segundo a SBQ.
Aqui, um projeto recém-aprovado no Senado prevê, agora, um auxílio-gás, no valor de 50% do preço nacional do botijão de 13 kg (atualmente orçado em R$ 100, mas que chega a ser vendido por R$ 130), para as famílias inscritas no Cadastro Único de programas sociais do governo federal. O projeto ainda será reavaliado pela Câmara dos Deputados.
Exposição excessiva ao álcool
Para além dos custos do botijão de gás, a pandemia favoreceu uma exposição excessiva das pessoas ao álcool como higienizador, sem que isso tenha sido acompanhado de medidas educativas, explica José Adorno, da Sociedade Brasileira de Queimaduras.
Adorno lembra que, em março de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) flexibilizou as restrições à fabricação e à venda do álcool na concentração 70%, que é altamente inflamável.
“Aumentou a presença do álcool na casa das pessoas, o que não é seguro”, pontua Adorno.
O resultado, diz ele, é que começaram a surgir desde casos extremos “de pessoas passando álcool gel no corpo como se fosse protetor solar” até um aumento nos atendimentos ambulatoriais e nas internações por conta de queimaduras acidentais graves, segundo relataram à SBQ centros hospitalares especializados em queimaduras.
Entre março e novembro de 2020, houve cerca de 700 internações decorrentes de acidentes com líquidos inflamáveis, diz a sociedade.
“Os acidentes mais comuns (ocorrem quando) o adulto acende um fogareiro com criança por perto, ou a criança depois pega o álcool para copiar o adulto”, prossegue o presidente da SBQ.
Acidentes em casas pequenas, em que a cozinha não fica em um cômodo separado, ou em áreas externas, com o uso de álcool líquido para acender churrasqueiras (o que não é recomendado), também são frequentes.
Por isso, segundo a SBQ, deve-se manter em casa apenas frascos pequenos de álcool 70%, para higienizar mãos, e usar na limpeza em geral água e sabão ou o álcool 46, que é menos volátil. E os recipientes devem sempre ser mantidos longe de locais quentes e fora do alcance de crianças.
“Mas os frascos de álcool também precisariam ser mais bem diferenciados pela indústria”, critica o Adorno. “O álcool 70% precisaria ter alguma tarja que o identificasse, assim como fazemos com medicamentos tarja preta ou com venenos.”
Palumbo, do Corpo de Bombeiros de São Paulo, lembra que, para churrasqueiras, o mais seguro é usar acendedores, que não vão evaporar rapidamente, como faz o álcool líquido.
Tratamento nem sempre existe
Gambiarras em redes de eletricidade, queimaduras por escaldadura (por exemplo, quando crianças viram sobre si panelas de água ou café quente) e botijões de gás mal instalados completam o quadro de causas comuns de acidentes, cujas vítimas nem sempre conseguem o tratamento adequado.
O professor universitário maranhense Daniel Moraes descobriu isso em 2017, quando uma explosão por vazamento de gás na casa de sua vizinha causou queimaduras em 65% de seu corpo. Foi o início de uma trágica saga pessoal que o deixou internado por nove meses e com a sensação de que, em suas palavras, “minha vida tinha acabado”.
“Eu não tinha ideia da dimensão disso (das queimaduras) até acontecer comigo, porque é um problema invisível”, diz Moraes à BBC News Brasil.
“Fiquei meses internado em um bom hospital aqui de Caxias (cidade a 360 km da capital maranhense São Luís), mas que não tinha atendimento especializado para queimaduras – que requer nutrição adequada, fisioterapia etc.”
Como ele não suportava a dor, cada troca de curativo tinha de ser feita no centro cirúrgico, sob anestesia geral. Sem fisioterapia e passando dias a fio deitado e imóvel, Moraes viu suas pernas – um dos principais focos das queimaduras – atrofiarem e “ficarem da mesma finura que meus braços”.
“Achei que não fosse sobreviver, nem voltar a andar”, recorda.
Foi só depois que conseguiu ser transferido para um centro de referência em Goiânia (GO) que Moraes conseguiu acesso a profissionais médicos especializados em queimaduras: “saí de lá 18 dias depois, andando.” O que o fez concluir que, se tivesse recebido cuidados adequados desde o início, seu sofrimento – cujas cicatrizes físicas e psicológicas perduram até hoje – poderia ter sido encurtado.
“Eu tive educação e acesso a informações e passei por tudo isso. Conheci pessoas de poder aquisitivo baixíssimo, pessoas que precisaram largar tudo para mudar de Estado e poder se tratar”, conta.
Com a amiga advogada Andréa Barbosa, que o ajudou durante o tratamento, Moraes criou a Associação Maranhense de Apoio a Sobreviventes de Queimaduras, em que ajudam vítimas a navegar pelo sistema estatal de saúde e a obter desde vagas em centros especializados até itens caros do tratamento, como malhas compressivas e cremes hidratantes.
“A maior parte dos sobreviventes que nos procuram vivem na pobreza, em povoados onde não há atendimento hospitalar”, conta Andréa Barbosa.
Existe, de fato, uma distribuição desigual na oferta per capita de atendimento a queimados no país, explica o médico José Adorno, com maior concentração no Sudeste e menor no Norte e em parte do Nordeste.
O Maranhão, apesar de ter um dos mais altos índices de acidentes com queimaduras no Nordeste, ainda não tem um centro próprio de atendimento a queimados – este está em fase de conclusão e treinamento de sua equipe. Enquanto isso, pacientes com frequência são mandados para outros Estados ou se tratam por conta própria, diz Barbosa.
“Para se ter uma ideia, em algumas casas que visitamos, encontramos crianças sentadas na rede com os braços (queimados) esticados, sem curativos nas queimaduras, apenas com um ventilador”.
(Observação: a recomendação de especialistas, no caso de queimaduras, é jamais aplicar pomadas, medicamentos ou quaisquer produtos caseiros, como borra de café ou clara de ovo; deve-se apenas lavar a área queimada com água corrente, cobrir com um pano limpo e buscar ajuda médica imediatamente).
‘Trauma que fica na penumbra’
Além da desigualdade no acesso a tratamento, um dos muitos aspectos trágicos é o fato de as queimaduras em geral afetarem pessoas jovens e crianças, no auge de suas vidas sociais e produtivas.
Segundo Adorno, as queimaduras são uma das principais causas de desperdício de anos de vida, porque muitas vezes exigem longos períodos de internação hospitalar, múltiplas cirurgias, afastamento do trabalho e reabilitação.
“É um problema que atinge um público jovem e impõe uma vida difícil, cheia de restrições (por exemplo, muita sensibilidade ao sol), estigma (por causa das cicatrizes) e cuidados físicos e psicológicos que o SUS não está preparado para oferecer”, diz o médico.
“É um trauma que fica na penumbra: o sequelado convive menos com a sociedade e é muito estigmatizado.”
A experiência de Daniel Moraes, ao deixar o hospital com máscaras e roupas especiais para proteger a pele, corrobora isso. “As pessoas te olham e você se sente muito mal. A reinserção social é muito difícil, (porque) o trauma é muito grande. Eu estava fazendo mestrado, começando minha carreira, e tudo precisou ser interrompido pelo acidente. Eu só consegui (retomar a vida) porque tive o apoio de muitas pessoas, de muitos amigos.”
Os desfechos podem, também, ser fatais: a SBQ calcula que o Brasil tenha acumulado 33 mil mortes por diferentes tipos de queimaduras entre 2011 e 2019.
O atraso no atendimento emergencial contribui para mortes ou a perda de membros, diz Adorno, uma vez que queimaduras mal cuidadas tendem a infeccionar.
“Enquanto os países desenvolvidos diminuíram sua mortalidade por queimaduras para cerca de 3% dos casos, aqui nossa mortalidade é, em média, de 8% a 10% dos casos”, agrega.
Prevenção sai mais barato, econômica e socialmente
No Hospital da Restauração, no dia em que Marcos Barreto conversou com a reportagem, no final de outubro, os 15 leitos infantis da ala de queimados estavam ocupados. Outras cinco crianças aguardavam vaga no corredor de emergência.
Os 25 leitos de adultos também estavam tomados, enquanto dois pacientes aguardavam na UTI e outros dois, na emergência.
Naquele mesmo dia, Barreto havia acabado de atender um paciente que havia ateado álcool e fogo ao próprio corpo, em uma tentativa de suicídio – casos que também se tornaram mais comuns na rotina do hospital em meio ao desalento da pandemia, de possíveis efeitos psicológicos da covid longa (problema que ainda está sendo estudado pela medicina) e da crise econômica, diz o médico.
Ele e sua equipe de 150 pessoas fazem em torno de 6 mil curativos em queimaduras todos os anos. “Parece uma guerra civil”, retrata.
Só as queimaduras por álcool, como a que matou Geisa Stefanini em Osasco, resultaram em quase 23 mil internações em todo o país entre 2012 e 2019, segundo a SBQ. Os custos estimados ao SUS são de R$ 73 milhões, sem contar os prejuízos sociais e produtivos das vítimas.
José Adorno cita um levantamento feito nos EUA apontando que cada US$ 1 investido em educação e prevenção de queimaduras gerou uma economia de US$ 27 em atendimento médico evitado.
“Cada dia de tratamento de uma queimadura em um centro avançado custa até US$ 1 mil (R$ 5,5 mil na cotação atual) e deixa para a sociedade uma pessoa cheia de sequelas e com dificuldades de reabilitação”, conclui o médico.