Por: BBC News
Nas últimas semanas, profissionais da saúde observaram um aumento considerável na busca por testes que avaliam a presença de anticorpos contra o coronavírus no organismo.
Apesar de não existirem estatísticas oficiais sobre o assunto, acredita-se que o aumento do interesse por esses exames esteja diretamente relacionado ao avanço da vacinação no país.
Após tomarem as duas doses do imunizante, as pessoas querem saber se estão efetivamente protegidas contra a covid-19.
Mas há um problema sério nisso: os testes disponíveis no mercado atualmente não são capazes de fornecer essa resposta de forma satisfatória.
E isso sem contar que a medição de anticorpos pós-vacinais não muda em nada as recomendações de cuidados e prevenção durante a pandemia.
O assunto evoluiu a tal ponto que a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) precisou emitir um parecer técnico oficial em que não recomenda a realização desses exames depois da imunização.
“Avaliações laboratoriais desse tipo não vão esclarecer nada e podem causar confusão. Quando o resultado dá negativo, a pessoa pode acreditar que a vacina não funcionou nela. Se der positivo, há o risco de abandono das medidas de proteção”, explica a pediatra Flávia Bravo, diretora da SBIm.
“E, na realidade, nenhuma dessas interpretações está correta”, completa.
“Esses testes são muito novos e nós não temos ainda informação suficiente sobre qual é a real aplicabilidade deles”, concorda o patologista clínico Carlos Eduardo dos Santos Ferreira, presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial.
Mas como os especialistas chegaram nesse posicionamento? E por que os exames de anticorpos podem mais atrapalhar que ajudar?
Para responder a essas questões, é preciso antes desvendar alguns detalhes do misterioso e fascinante mundo da imunidade.
Sempre alerta
Vírus, bactérias, picadas de inseto, farpas… Todo corpo estranho que invade nosso organismo logo é identificado (e, se necessário, atacado) por um time de células que integram o sistema imunológico.
Falamos aqui dos linfócitos, monócitos, neutrófilos, basófilos, eosinófilos, macrófagos e outras unidades responsáveis por proteger o corpo contra as mais variadas ameaças.
De forma bastante resumida, essa equipe possui três formas de atuação principais.
A primeira delas é a chamada imunidade inata.
“Parte do sistema de defesa tem essa capacidade de agir rapidamente, em questão de minutos ou poucas horas”, ensina o médico João Viola, presidente do Comitê Científico da Sociedade Brasileira de Imunologia.
Essa resposta inata pode ser facilmente observada quando a gente toma uma picada de pernilongo na pele: a região fica ligeiramente inchada, avermelhada e começa a coçar.
Isso significa que algumas células estão agindo ali, em tempo real, para identificar e combater aquelas substâncias que o mosquito injeta ao sugar nosso sangue.
Prazo estendido
Os outros dois tipos de imunidade demoram um pouquinho mais para surtir resultado.
Tratam-se das respostas humoral e celular. Ambas são mediadas por um tipo de célula importantíssima do sistema de defesa: os linfócitos.
“A resposta humoral é feita pelos linfócitos B, que entram em contato com partes do agente patogênico e, após dez a 20 dias, desenvolvem anticorpos conhecidos como IgA, IgG e IgM”, detalha Viola, que também é pesquisador do Instituto Nacional de Câncer (Inca), no Rio de Janeiro.
Já a resposta celular depende dos linfócitos T, que também demoram de duas a três semanas para “aprender a lidar” com os agentes infecciosos.
Eles são responsáveis por coordenar todo um batalhão de outras células que contra-atacam e destroem os vírus, bactérias, fungos, protozoários ou outros vilões que estão causando problema em alguma parte do corpo.
Da teoria à prática
Vale dizer que esse mesmo raciocínio se aplica às vacinas: elas trazem informações (como vírus inteiros inativados ou pedacinhos deles, por exemplo) capazes de suscitar toda essa reação imunológica sem causar a doença em si.
Com isso, o sistema de defesa já constitui um verdadeiro arsenal de anticorpos e células “bem treinadas” para saber como reagir quando for exposto a um perigo real.
É justamente isso que ocorre com os imunizantes desenvolvidos contra a covid-19: por meio de diferentes plataformas tecnológicas e mecanismos de ação, eles conseguem ativar uma resposta contra o coronavírus que impede a infecção (ou ao menos as suas formas mais graves).
As vacinas aprovadas foram avaliadas em dezenas de milhares de voluntários e se mostraram seguras e eficazes.
E isso nos faz voltar à pergunta lá do início da reportagem: diante de todo esse conhecimento, qual seria a utilidade dos testes que medem a produção de anticorpos após a vacinação?
Santos explica que os exames já disponíveis são feitos a partir da coleta de uma amostra de sangue.
“Eles mensuram a quantidade de anticorpos neutralizantes ou outros anticorpos que agem especificamente em alguma parte do coronavírus, como a proteína S, que fica na superfície do agente infeccioso”, diz o patologista clínico.
Ou seja: esses exames medem apenas uma parte muito pequena e específica da resposta imunológica humoral.
Com isso, eles não mostram toda a realidade do que é desencadeado após a vacinação, algo muito mais complexo e diverso.
Pode ser, portanto, que a pessoa não desenvolva muitos anticorpos específicos contra a tal proteína S após a vacinação, mas tenha obtido uma resposta humoral satisfatória contra outros pedacinhos do vírus.
Uma segunda possibilidade está na imunidade celular: os seus linfócitos T podem estar muito bem treinados para extirpar a ameaça do corpo antes que ela se agrave.
E não dá pra ignorar a imunidade inata: ela também tem um papel importante a cumprir no meio de toda essa confusão.
Em outras palavras, fazer esses testes após a vacinação pode ser comparado a olhar um quarto através do buraquinho da fechadura: você pode até ter uma leve ideia do que ocorre lá dentro, mas isso não é suficiente para entender o que está acontecendo de verdade do outro lado daquela porta.
Conclusões precipitadas
Vamos supor que um indivíduo desavisado tomou as duas doses da vacina, esperou alguns dias e quis saber se suas células trabalharam direitinho e produziram os tais anticorpos protetores.
Ele vai então até um laboratório, deixa um pouco de sangue lá e recebe o laudo do exame alguns dias depois.
Possibilidade um: o teste não detectou um número suficiente de anticorpos para lidar com a covid-19.
Um resultado desses pode causar frustração e desembocar numa série de conclusões precipitadas sobre a efetividade das vacinas (quando sabemos que a imunidade é muito mais complexa que a simples quantidade de anticorpos).
Possibilidade dois: o teste encontrou um bom nível de anticorpos contra o coronavírus.
“Uma observação dessas pode até deixar a pessoa feliz, mas também representa um risco: há uma tendência de relaxarmos nas medidas de proteção quando acreditamos que estamos mais resguardados”, raciocina Bravo.
Além de armarem essas arapucas, os testes pós-imunização não mudam em nada o comportamento que devemos ter pelos próximos meses: vacinados e não vacinados precisam continuar a usar máscaras, manter distanciamento social, cuidar da higiene das mãos, privilegiar ambientes arejados…
“Na prática, resultados positivos ou negativos não representam nada. Por isso, os testes não são recomendados nesse contexto não só pela SBIm, mas também por outras entidades como a Organização Mundial da Saúde e o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos”, completa a pediatra.
Sem nenhuma utilidade?
Na área da imunologia, os testes de anticorpos após a vacinação são utilizados apenas em situações muito específicas.
Uma indicação clara deles acontece nos pacientes que precisam se vacinar contra a hepatite B e estão com o sistema imunológico suprimido por doenças ou tratamentos médicos.
Nessa situação, os profissionais de saúde podem pedir esses exames para entender se os imunizantes surtiram o efeito desejado.
Se os resultados estiverem abaixo do esperado, é possível tomar doses de reforço para garantir proteção contra esse vírus que afeta o fígado e pode causar cirrose ou câncer.
Na atual pandemia, essas análises laboratoriais têm um papel muito importante a cumprir do ponto de vista coletivo: quando feitas em milhares de pessoas de uma determinada comunidade, elas ajudam a calcular o impacto da doença ou da vacinação naquele local.
“Esses trabalhos acadêmicos nos permitem entender a epidemiologia da covid-19 e quanto tempo dura a proteção após a infecção ou a vacinação”, esclarece Viola.
Esse conhecimento será essencial para determinar, num futuro próximo, qual será a periodicidade da aplicação de doses para ficar protegido do coronavírus.
Esses inquéritos sorológicos populacionais, como são conhecidos, poderão indicar o tempo que a resposta do sistema de defesa (obtida com a vacinação ou a infecção) permanece ativa após a covid-19.
Em algumas doenças infecciosas, como a febre amarela e a catapora, essa proteção dura décadas ou praticamente por toda a vida.
Já em outras, como a gripe, essa imunidade se enfraquece após alguns meses — daí a necessidade, inclusive, de se vacinar todos os anos.
Por ora, ainda não há uma resposta clara sobre isso para a covid-19, mas tudo indica que será necessário fazer campanhas de imunizações de tempos em tempos.
E quem vai ajudar a determinar essa periodicidade são justamente as pesquisas sobre como nosso sistema imunológico se comporta no longo prazo.
“A ciência ainda está buscando meios de entender essas diferenças imunológicas entre as doenças. E quem fizer essa descoberta provavelmente ganhará um Prêmio Nobel”, aponta Viola.
Recomendações finais
Num texto que viralizou nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais, o biólogo Martin Bonamino, do Inca, traz uma série de recomendações e ideias relacionadas à discussão sobre os testes após a vacinação.
Primeiro, ele apresenta que os efeitos da imunização são medidos do ponto de vista coletivo. “O dado que nos interessa de fato é o impacto das vacinas na população em termos de número de contágios, internações, casos graves e óbitos. E, ao que parece, todas as vacinas aprovadas têm impacto positivo nestes quesitos, inclusive as duas que são oferecidas atualmente no país”.
O especialista continua: “Os dados estão começando a aparecer no Brasil e indicam que ao menos a CoronaVac protegeria das variantes na mesma taxa que faz com o vírus original, o que realmente é uma ótima notícia se confirmada. Nas próximas semanas certamente teremos mais dados disponíveis para avaliarmos estes perfis de resposta e proteção. Confiemos, portanto, no efeito das vacinas. Tem pouca serventia se preocupar com a quantidade ou qualidade dos seus anticorpos.”
Bonamino também destaca a importância de vacinarmos as pessoas o mais rápido possível: “Mais vale pressionar para que tenhamos a maior quantidade de vacinas no menor prazo possível. Após se vacinar, siga se protegendo para não se expor e não expor os demais. E aguardemos que, assim que muita gente tenha sido vacinada, consigamos diminuir a circulação do vírus. Só então estaremos todos mais seguros.”
Por fim, o imunologista deixa uma orientação para todas as pessoas que estão interessadas em passar por esses testes. “Se você tem recursos financeiros sobrando e quer se sentir mais confortável com tudo o que está acontecendo à nossa volta, não gaste seu dinheiro com estes testes. Feitos desta maneira, eles não terão qualquer impacto real na evolução da doença no país e dirão pouco sobre sua chance de pegar covid-19 após vacinado”.
“Doe estes recursos para as iniciativas que estão apoiando as pessoas com mais necessidades e os mais vulneráveis neste momento tão delicado. Este gesto sim ajudará a mitigar os efeitos da pandemia”, completa.