O que mata mais, o excesso de frio ou de calor?

0
Jardineiro de Madri se refresca durante uma onda de calor de verão. Foto: Reprodução/ KIKE PARA

Por: El País

A onda de frio que atingiu o Brasil na última semana fez com que parte da sociedade civil se mobilizasse para ajudar a população em situação de rua, vulnerável às consequências mais dramáticas da queda drástica das temperaturas. Nevou em dezenas de cidades do Sul brasileiro, teve geada em vários outros Estados e a temperatura ficou negativa na capital paulista, num cenário atípico, mesmo no inverno, para uma região tropical. As cenas de cidades brasileiras sob uma fina camada de gelo contrastam com os registros de incêndios e temperaturas extremamente elevadas na América do Norte. Nem o Brasil está preparado para um frio nesse nível, nem o Canadá para um calor de derreter. As cenas despertam o debate público sobre a situação de emergência climática do planeta e levantam a questão: o que é mais perigoso, frio ou calor extremo?

Um estudo publicado no julho publicado na revista The Lancet Planetary Health, com base em dados de mortalidade de 147 regiões de 16 países europeus (entre eles a Espanha), mostrou que as mortes atribuíveis às temperaturas — tanto frias como quentes —passaram de 7% do total de falecimentos na Europa entre 1998 e 2012. Ao todo, a pesquisa estima em surpreendentes quatro milhões as mortes relacionadas com as temperaturasnesses 15 anos (cerca de 270.000 óbitos por ano).

Atualmente, o calor e o frio não têm a mesma incidência na mortandade: as baixas temperaturas estão relacionadas com até 10 vezes mais mortes do que o calor. Mas os autores do relatório alertam que a crise climática mudará essa situação. As mortes associadas ao frio diminuirão, enquanto os óbitos relacionados ao calor aumentarão. E, se a humanidade continuar superaquecendo a Terra com seus gases de efeito estufa no mesmo ritmo como tem feito até agora, o resultado não será positivo: o aumento das mortes provocadas pelo calor no final deste século superará a redução dos falecimentos relacionados ao frio na Europa.

Èrica Martínez Solanas, uma das autoras do artigo e pesquisadora do Programa de Clima e Saúde do ISGlobal, explica que “no curto prazo, espera-se um redução das mortes derivadas do calor”. No entanto, a situação mudará a partir de meados deste século: “Haverá um ponto de inflexão de mortes atribuíveis ao calor, que fará com que haja mais mortalidade relacionada com o calor do que com o frio”.

Martínez assinala que existem alguns estudos que apontam para um equilíbrio e, até mesmo, para um efeito positivo, em relação às mortes, do processo de aquecimento que o planeta vive — esse é um dos argumentos usados pelos defensores dos combustíveis fósseis e por quem não quer que sejam adotadas políticas drásticas contra a mudança climática. Mas a pesquisadora sustenta que “tudo depende do horizonte de tempo utilizado”. Ou seja, se for levado em conta o aumento das temperaturas previsto nos diferentes cenários para o final do século, esse efeito positivo na mortalidade se dilui, segundo seu estudo.

Os autores fizeram projeções para vários cenários: um muito otimista, no qual as emissões de gases de efeito estufa seriam reduzidas em alta velocidade, em linha com o Acordo de Paris (o que faria com que, no final do século, o aumento médio de temperatura na Europa fosse de 1,67 grau em relação aos níveis pré-industriais); outro que prevê uma redução menor de emissões e um aumento de 2,89 graus na temperatura em 2100; e um último cenário em que as emissões continuariam como até agora, fazendo a temperatura média subir 4,54 graus. O estudo ressalta que, para o final do século, “espera-se que o aumento da fração [de mortalidade] atribuível ao calor supere a redução daquela que é atribuível ao frio, principalmente nos cenários que consideram pouca ou nenhuma mitigação”, ou seja, naqueles em que o aumento da temperatura média ultrapassa 2,89 graus na Europa.

Se os dados forem analisados por regiões, o estudo aponta uma diminuição homogênea das mortes atribuíveis ao frio em toda a Europa nas próximas décadas devido à mudança climática. No entanto, isso não acontece em relação aos falecimentos por calor: há um aumento maior na área do Mediterrâneo.

No caso da Espanha, por exemplo, as mortes atribuídas às temperaturas no estudo para o período analisado (1998-2012) são 5,32% do total; 4,31% relacionadas ao frio e 1,01%, ao calor. No final do século, no cenário mais pessimista de aquecimento global, as mortes chegariam a 5,19%. As relacionadas ao calor subiriam para 7,37% do total, enquanto as vinculadas ao frio cairiam 2,18%.

Uma ambulância do Exército ao lado da Fonte de Cibeles, em Madri, depois da tempestade Filomena, no início deste ano. ÁLVARO GARCÍA
Uma ambulância do Exército ao lado da Fonte de Cibeles, em Madri, depois da tempestade Filomena, no início deste ano. ÁLVARO GARCÍA ÁLVARO GARCÍA

Ondas de calor e de frio

Para realizar seus cálculos, os pesquisadores estabeleceram primeiro uma “temperatura de mortalidade mínima”, que é “diferente para cada região e país”, explica Martínez, que compartilha a autoria principal do artigo com Marcos Quijal, também pesquisador do ISGlobal, um centro promovido pela Fundação La Caixa. Dentro da Espanha, por exemplo, essa temperatura de mortalidade mínima para o período de 15 anos analisado foi de 20,5 graus na Catalunha, 22,8 em Madri e 23,9 na Andaluzia. A partir daí, os pesquisadores calculam o excesso de mortalidade atribuível ao calor e ao frio.

Mas, como explica Julio Díaz, da Escola Nacional de Saúde do Instituto de Saúde Carlos III, os falecimentos atribuíveis às temperaturas altas ou baixas não são a mesma coisa que as mortes provocadas por uma onda de calor ou frio. Nesse caso, a situação se inverte: na Europa morrem muito mais pessoas pelas ondas de calor do que pelas de frio. Na Espanha, por exemplo, morrem a cada ano 1.050 pessoas pelas ondas de frio e 1.380 pelas de calor, lembra Díaz, que não é um dos autores do artigo publicado na The Lancet, mas é um dos principais especialistas do país em saúde e meio ambiente. Isso se deve, simplesmente, ao fato de que as ondas de calor — os períodos de mais de três dias com temperaturas acima das máximas habituais — são mais numerosas do que as de frio.

No entanto, se for usada como referência apenas a temperatura de mortalidade mínima, os dias em que os termômetros ficam abaixo desse ponto são muito mais numerosos do que os dias em que ficam acima, assinala Díaz.

Pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo, na madrugada de sexta-feira, 30 de julho, uma das noites mais frias da história recente.
Pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo, na madrugada de sexta-feira, 30 de julho, uma das noites mais frias da história recente.TONI PIRES

Os efeitos para a saúde

Mas, além da razão numérica, por que o calor é mais perigoso do que o friopara a saúde? Díaz explica que o frio interage com doenças infecciosas que não estão presentes nos meses de verão. São doenças, muitas delas respiratórias, transmitidas e agravadas no inverno, como gripe ou pneumonia.

Isso não significa que o calor também não tenha impacto na saúde. María Neira, diretora do Departamento de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial da Saúde (OMS), assinala que as temperaturas extremamente altas causam um agravamento das doenças respiratórias e cardiovasculares, “principalmente em idosos”. Além disso, propiciam o aumento do ozônio, que tem efeitos negativos para a saúde humana, assim como do pólen e de outros alérgenos, que provocam mais crises de asma.

Neira lembra que os estudos preveem o aumento, nas próximas décadas, da mortalidade relacionada com o calor e com outros fenômenos extremos vinculados ao aquecimento global — como inundações ou secas que colocam em risco a segurança alimentar em muitas áreas do planeta. E alerta: “Em nenhum caso os danos à saúde causados pela mudança climática serão compensados pela redução da mortalidade relacionada ao frio”.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor, digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui