Por: BBC NEWS
O médico inglês Matthew Harris hoje trabalha, em Londres, em um projeto inspirado no que aprendeu com o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro há mais de 20 anos.
Um ano depois de se formar em Medicina no Reino Unido, ele se mudou para Pernambuco em 1999 e, após passar pelas provas para revalidar o diploma no país, começou a atuar como clínico-geral de uma unidade de saúde no município de Camaragibe, na região metropolitana de Recife.
Harris permaneceu na clínica durante quatro anos. À época, ele não tinha ideia de que a experiência mudaria a carreira — e até provocaria transformações no Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) do Reino Unido duas décadas depois.
Atualmente, ele é pesquisador da Escola de Saúde Pública do Imperial College de Londres e lidera um projeto que pretende implementar os agentes comunitários de saúde, algo que existe no SUS há décadas, em território britânico.
Harris recebeu a equipe da BBC News Brasil numa sala do Departamento de Atenção Primária e Saúde Pública da universidade, localizada no oeste da capital da Inglaterra, para compartilhar um pouco de sua história profissional e da iniciativa britânica inspirada no SUS.
Os primeiros passos
O clínico geral conta que as condições de Camaragibe não eram as melhores lá em 1999. “Eu trabalhava numa área rural com cerca de 5 mil residentes”, contextualiza.
Harris classifica as primeiras experiências práticas que teve na Medicina como “desafiadoras”.
“Eu acabara de sair da universidade, não possuía confiança absoluta para falar português e tinha que fazer meu trabalho numa comunidade muito pobre do Nordeste brasileiro”, lembra ele.
“A clínica possuía apenas alguns poucos medicamentos enviados pela prefeitura. Era uma situação muito diferente da que estava acostumado no Reino Unido.”
Apesar de todas as dificuldades, Harris rapidamente percebeu algo primordial. “Apesar de todos os desafios e da falta de recursos, ainda assim podemos fazer coisas extraordinárias na atenção básica de saúde”, diz.
E, na visão dele, quem faz o elo dessa cadeia da saúde pública brasileira é um profissional chamado agente comunitário.
Esses indivíduos representam a pedra fundamental da Estratégia Saúde da Família (ESF). Criado nos anos 1990, o programa se baseia na premissa de os tais agentes visitarem a casa das pessoas de uma determinada região de um bairro ou de uma cidade.
O objetivo é entender e acompanhar os principais problemas de saúde que afligem aqueles indivíduos — e, claro, levar essas informações para os enfermeiros, auxiliares de enfermagem, médicos da família e clínicos gerais que estão na Unidade Básica de Saúde responsável por aquela localidade.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde informou que o país conta atualmente com 49.172 equipes de Saúde da Família, que são responsáveis por atender 167 milhões de cidadãos cadastrados (ou 79% da população total) nos serviços de atenção primária, que são considerados pelo governo como “a porta de entrada para o SUS”.
“Quando cheguei, não tinha a mínima noção de como o sistema de saúde pública do Brasil estava baseado nesses agentes comunitários”, confessa Harris.
O médico inglês notou aos poucos como as informações obtidas por esses profissionais eram úteis no dia a dia. “Eles conhecem e compreendem o local onde atuam profundamente, nos mínimos detalhes”, chama a atenção.
“Os agentes comunitários são os primeiros a saber sobre qualquer mudança que acontece. E essas informações são usadas de forma inteligente, antes que os problemas se tornem grandes demais”, complementa.
Os agentes comunitários passam por cursos técnicos de formação organizados por prefeituras e outros órgãos em que aprendem sobre promoção de saúde e prevenção de doenças.
Eles vão usar essas informações durante as entrevistas e conversas feitas nas visitas domiciliares. Se possuírem formação e tiverem a supervisão de um enfermeiro ou médico, eles também podem realizar exames simples, como medir a temperatura corporal, a glicemia e a pressão arterial das pessoas, ou averiguar se tratamentos medicamentosos contra doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, estão sendo tomados.
Vidas salvas pela informação
Questionado pela BBC News Brasil sobre episódios específicos que marcaram sua carreira, Harris lembra da história de um menino de 11 anos que foi parar no pronto-socorro.
“Ele se queixava de dor de cabeça há vários dias. Infelizmente, o serviço de emergência só podia oferecer paracetamol e ‘torcer’ para que ele melhorasse”, relata.
Mas o trabalho de um agente comunitário mudou essa história. “Durante uma visita de rotina, o profissional notou que o menino continuava mal e nos alertou. Os olhos incharam e ele parecia cada vez pior”, conta.
Ao trazer o garoto para uma consulta, Harris notou duas coisas: a pressão arterial estava alterada e a criança apresentava um ferimento no pé.
“Ao juntar todas essas peças, pude fazer o diagnóstico de glomerulonefrite pós-estreptocócica”, completa Harris.
Essa doença de nome esquisito é uma complicação que acomete os rins de pacientes que tiveram uma infecção pela bactéria Streptococcus.
No caso desse episódio em Pernambuco, o médico suspeitou da condição ao somar as pistas do corte no pé (um indício de infecção bacteriana) com a pressão baixa e a dor de cabeça (que sugerem algo de errado nos rins).
“Se ele não fosse diagnosticado a tempo, provavelmente teria falência renal e acabaria morrendo”, diz Harris. “Mas a detecção rápida a partir do trabalho do agente comunitário literalmente salvou a vida daquele garoto.”
De volta à casa
Após quatro anos em terras pernambucanas, Harris retornou ao Reino Unido em 2003 com pelo menos uma certeza na bagagem: era necessário replicar a ESF no serviço de saúde pública britânico.
E uma tarefa dessa magnitude carrega uma série de simbolismos e significados.
Um dos principais deles é o fato de a criação do SUS no Brasil lá no final dos anos 1980 ter sido inspirada no NHS do Reino Unido — e, agora, esses papeis se inverterem.
“Mesmo antes de voltar, eu já sabia imediatamente que aprendera algo com os brasileiros e precisava compartilhar isso. Eu necessitava dividir e abrir os olhos dos especialistas sobre os agentes comunitários”, pontua.
“Todos precisam conhecer o modelo de sucesso do Brasil”, recomenda o pesquisador.
Mas a missão mostrou-se mais árdua do que ele imaginava.
“Infelizmente, levei entre 10 e 15 anos para explicar a importância de um sistema como o ESF porque as pessoas daqui não estão acostumadas com a realidade brasileira e têm representações erradas sobre o país”, lamenta ele.
“Mas a verdade é que as realidades de Brasil e Reino Unido estão mais próximas do que se imagina. Há mais coisas que nos unem do que elementos que nos separam”, acredita o médico.
“É claro que não temos aqui doenças como leptospirose, esquistossomose e dengue. Mas também sofremos com diabetes, tuberculose, hipertensão, depressão, asma, diarreia…”, compara.
Harris avalia que um dos fatores que ajudou a acelerar processos e permitiu a instalação de uma ESF britânica preliminar foi a pandemia de covid-19.
“Nós argumentamos que precisávamos de um sistema de agentes comunitários de saúde como o do Brasil para acompanhar as pessoas de perto”, destaca.
E assim a iniciativa ganhou vida: o projeto-piloto começou em Churchill Gardens Estate, um conjunto habitacional em Westminster, no centro de Londres.
Os primeiros resultados
Segundo Harris, a ideia inicial era checar se as pessoas estariam dispostas a abrir as portas de suas casas para conversar com os agentes de saúde.
“E logo nos seis primeiros meses nós percebemos que isso não apenas era possível, como também os moradores aceitavam muito bem a abordagem”, informa.
O médico calcula que, no primeiro ano e meio do projeto, cerca de 70% das moradias do bairro receberam ao menos uma visita dos profissionais da saúde.
“Os agentes conseguem estabelecer uma relação com as pessoas e entender realmente quais são as necessidades dela. O ponto importante é que eles próprios moram ali, então se veem como parte daquela comunidade”, destaca.
Harris diz que a equipe fez alguns estudos para medir os resultados práticos da experiência.
“Quando comparamos os lares que receberam as visitas com aqueles que não fazem parte do projeto-piloto, percebemos que o primeiro grupo participou mais de campanhas de vacinação e fez exames de rotina com maior frequência”, conta.
“Claro, não podemos provar que essa mudança está totalmente relacionada aos agentes de saúde. Mas é no mínimo sugestivo que isso tenha ocorrido a partir do início de trabalho desses profissionais”, complementa.
De acordo com o especialista, os funcionários do programa são capacitados para identificar e até resolver os principais problemas de saúde que estão acometendo cada família.
A partir disso, os indivíduos se veem mais livres e empoderados para cuidar de outros aspectos importantes, mas que estavam negligenciados, como atualizar a carteirinha de vacinação ou fazer os exames que detectam um câncer em estágio precoce.
Aliás, o treinamento oferecido aos agentes comunitários britânicos foi basicamente o mesmo dado aos profissionais brasileiros.
Mas Harris acredita que os efeitos práticos de um projeto como o ESF vão além do aumento na taxa de imunizações ou de checkups.
“Em Churchill Gardens Estate, por exemplo, nós observamos que as pessoas moravam nas mesmas casas há muitos anos, mas não conheciam os vizinhos e nem se falavam. Porém, com as visitas dos agentes comunitários de porta em porta, houve uma mudança de atmosfera. Os moradores passaram a conversar mais e a marcar programas em conjunto, como um café”, acrescenta.
O médico entende que a estratégia criou uma espécie de “coesão social” — algo muito parecido ao que ocorreu no próprio Brasil nas regiões atendidas há décadas pelo ESF.
O projeto-piloto já foi expandido para outras áreas de Londres e deve começar a ser aplicado em bairros de locais como Yorkshire e Liverpool.
Baixo custo, alto valor
Harris aponta que os países mais desenvolvidos, como o próprio Reino Unido, não prestam muita atenção ao que é feito em nações em desenvolvimento.
“Nossa tendência é acompanhar de perto o que acontece em lugares como Estados Unidos, Alemanha, Austrália ou Nova Zelândia e praticamente ignorar as políticas dos países da América Latina, da África e do Sudeste Asiático. Mas não há nenhuma boa razão para que isso seja assim”, protesta.
Para ele, o trabalho dos agentes comunitários de saúde é um exemplo desse cenário.
“A ESF do Brasil é um programa altamente custo-efetivo e ajuda a resolver os problemas mais comuns ao acompanhar as famílias de uma forma holística no lugar mais importante de todos: a casa delas”, afirma Harris.
O especialista calcula que cerca de 40% das necessidades de saúde das pessoas podem ser atendidas pelos agentes comunitários durante as conversas e as visitas domiciliares.
“Eles podem falar das vacinas, ficar atentos a sintomas de doenças crônicas [como hipertensão e diabetes], lidar com feridas, sugerir a realização de exames de rotina ou simplesmente checar se a pessoa está tomando os remédios corretamente”, exemplifica.
Por fim, o pesquisador do Imperial College destaca como, em determinadas situações, soluções simples e baratas em saúde podem trazer resultados extraordinários.
“É claro que temos espaço para tecnologias sofisticadas, que expandem as fronteiras da Medicina”, opina.
“Mas algumas vezes eu sinto que vamos além do necessário e nos esquecemos que as intervenções mais básicas podem fazer toda a diferença”, conclui ele.