Por: BBC News
“Sou professora da Educação Infantil (para alunos de até cinco anos de idade). Parte de mim foi trabalhar (presencialmente) morrendo de medo e pensando: é questão de tempo até eu pegar (o novo coronavírus)… São muitas turmas, muitas chances diferentes todos os dias”, escreveu Luiza* em mensagem à BBC News Brasil no Instagram.
Após retornar à escola, no mês passado, Luiza, que é professora de inglês em João Pessoa (PB), contraiu o novo coronavírus. “Peguei covid-19 na segunda semana de aulas (presenciais)”, relatou na mensagem. A situação trouxe revolta para ela, que diz ter tomado muito cuidado para evitar a infecção pelo coronavírus desde o início da pandemia. Para Luiza, não há dúvidas de que foi infectada no trabalho. “Outros cinco professores da escola também pegaram o vírus no mesmo período.”
A situação de angústia relatada por Luiza diante das aulas presenciais no atual período tem sido um sentimento comum entre trabalhadores da educação de todo o país nas últimas semanas. Enquanto o Brasil enfrenta a sua pior fase de covid-19 desde o início da pandemia, com sucessivos recordes de mortes, diversas escolas públicas e particulares retomaram o ensino nas unidades físicas.
Desde o início do ano letivo, há diversos relatos de infecções pelo novo coronavírus e até mortes registradas após o retorno das atividades presenciais nas unidades de ensino.
O ensino presencial virou alvo de debates constantes. Muitos profissionais da educação relatam o temor da covid-19 e, por isso, defendem que o ensino remoto seja adotado integralmente no atual período. Porém, há segmentos que defendem que é possível retomar a educação presencial com segurança e argumentam que a volta às salas de aula é fundamental para que os estudantes possam ter um melhor desempenho.
A divergência sobre o retorno ao ensino presencial é ilustrada pelos posicionamentos de duas entidades nacionais. Na semana passada, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) defendeu a suspensão das atividades presenciais nas escolas no atual período, para conter o avanço do novo coronavírus. Posteriormente, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) afirmou, em nota, estar preocupado com a defesa da “suspensão das atividades presenciais de todos os níveis da educação do país”.
A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre o ensino presencial no atual momento. Porém, a pasta não se pronunciou sobre o tema.
O retorno ao ensino presencial
Desde o início deste ano, muitas escolas das redes estaduais, municipais e privadas de todo o país adotaram o ensino de forma híbrida, que combina o presencial com o remoto. Assim, as turmas são divididas em pequenos grupos para que não haja a mesma quantidade de alunos em sala como era comum antes da pandemia. A cada semana uma parte dos alunos acompanha as disciplinas presencialmente, enquanto os outros assistem ao conteúdo online.
Para retomar o ensino presencial, as orientações de especialistas são a adoção de medidas como o uso de máscaras, o distanciamento social de, ao menos, 1,5 metro, medição de temperatura e a utilização de álcool em gel. Além disso, cientistas recomendam que o ar-condicionado seja desligado para que as janelas sejam abertas, para facilitar a circulação do ar e evitar a propagação do coronavírus.
Mas as recomendações nem sempre têm sido seguidas nas unidades de ensino que retomaram as aulas presenciais. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), em todo o país há diversos relatos sobre escolas em que não há álcool em gel ou máscaras suficientes para professores e outros trabalhadores da unidade de ensino.
“A comunidade escolar está apavorada e muito preocupada, por isso o nosso movimento é para não retornar ao ensino presencial no momento. Muitas famílias também estão com medo e não têm coragem de mandar seus filhos para a escola neste período”, declara o presidente da CNTE, Heleno Araújo. Segundo ele, os relatos de irregularidades são encaminhados para sindicatos locais que representam profissionais da Educação para que apurem cada caso.
Heleno conta também que recebe diversos relatos de unidades de ensino que não afastaram professores que tiveram contato com alunos infectados. A orientação de especialistas é que todos que tiveram contato com um estudante infectado, ou com suspeita de infecção, sejam isolados e testados. “Mas o que está escrito nos protocolos não está sendo seguido”, afirma.
Para Gilson Reis, coordenador-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), as unidades de ensino com aulas presenciais estão falhando no controle epidemiológico. “É preciso fazer esse controle. Se houver algum infectado em uma turma, é preciso isolar todos, inclusive o professor (para evitar possível propagação do vírus)”, diz.
Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara afirma que tem recebido diariamente mensagens de profissionais da educação, familiares ou estudantes sobre infecções em escolas que reabriram. Segundo ele, os relatos envolvem casos de adoecimentos pelo coronavírus, internações em UTI, falta de leitos e até mortes pela doença.
“É um cenário de total angústia. Agora cresce também os números de crianças internadas com a covid-19 ou com sequelas, mesmo tendo sido assintomáticas”, diz Cara à BBC News Brasil. Ele declara que a reabertura das escolas não deveria ser um debate no atual momento. “O único foco deve ser vencer a pandemia”‘, afirma.
Um levantamento da CNTE no fim de fevereiro estimou que aproximadamente metade dos Estados brasileiros adotaram algum tipo de ensino presencial no atual período. Os membros da confederação avaliam que a tendência é de que, com a explosão de casos de covid-19 no país, as escolas cada vez mais abandonem temporariamente as atividades presenciais.
Nas últimas semanas, houve diversas manifestações de profissionais da Educação contra o retorno às aulas presenciais no atual período.
Não há um levantamento nacional sobre casos de infecções ou mortes pela covid-19 relacionadas ao ambiente escolar.
No Estado de São Paulo, um monitoramento feito pela Secretaria Estadual de Educação apontou que foram registrados 4.084 casos de covid-19 em escolas públicas e particulares entre 3 de janeiro e 6 de março deste ano. No período, foram registradas 21 mortes pelo coronavírus na rede de ensino — sendo dois alunos e 19 servidores.
O Sindicato dos Professores de São Paulo (Sinpro-SP) aponta que somente na capital paulista recebeu 231 relatos de contaminações pela covid-19 em escolas particulares, do início do ano letivo de 2021 até a última sexta-feira (05/03).
Contrários às aulas presenciais, professores de escolas particulares da cidade de São Paulo decidiram que entrarão em greve a partir desta quinta-feira (11/03). A decisão foi tomada durante assembleia realizada pelo Sinpro-SP. Os trabalhadores planejam retomar as atividades somente se o ensino for totalmente remoto no atual período.
Na terça-feira (09/03), o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que os profissionais de educação do Estado não poderão ser convocados para aulas presenciais em escolas públicas e privadas durante as fases laranja e vermelha do plano estadual. Ainda cabe recurso ao governo estadual. Atualmente, São Paulo enfrenta a fase vermelha, mas as escolas continuam abertas porque foram colocadas na área de serviços essenciais.
‘Peguei covid no retorno às aulas presenciais’
Cada vez mais comuns, os relatos de profissionais da educação e alunos que contraíram a covid-19 causam apreensão entre aqueles que precisam ir presencialmente às escolas.
Pelo país, há casos de escolas públicas e particulares que suspenderam completamente as atividades presenciais nas últimas semanas após surtos de covid-19 entre funcionários ou alunos.
Na escola de Luiza, a professora de inglês que abre esta reportagem, houve vários registros de infecções pelo coronavírus. Ela relata que estava temporariamente na unidade de ensino particular para substituir um outro professor que havia sido afastado após contrair o novo coronavírus. “Esse professor pegou covid na segunda semana de aula, assim como uma coordenadora e uma outra professora de Educação Infantil também tinham pegado na época”, relembra.
Ela relata que soube de diversos casos de pais de alunos que testaram positivo. “As crianças acabavam ficando de quarentena junto com a família”, diz.
Pouco após Luiza concluir os 15 dias de substituição do outro professor na escola, ela testou positivo para a covid-19.
Ela afirma ter certeza de que foi infectada na unidade de ensino porque outros professores também foram contaminados no mesmo período. Além disso, ela conta que estava em isolamento desde o início da pandemia. “Não fui a nenhum outro lugar, além da escola, nesse período. Até porque o trabalho na escola estava bem puxado, porque ficaram poucos professores para todas as turmas”, diz.
A professora comenta que a escola adotou medidas contra a covid-19, mas havia algumas falhas. Ela cita, por exemplo, que as salas ficavam fechadas na maioria do tempo. “Às vezes as janelas eram abertas, quando era feita uma limpeza na sala”, diz.
Além disso, ela comenta que teve alguns descuidos na rotina com as crianças. “Houve algumas bobeiras da minha parte, porque eu ia às carteiras das crianças, muitas estavam com máscara caída, sem trocar depois do lanche…”, detalha.
A infecção pela doença causada pelo novo coronavírus trouxe revolta a Luiza. Na semana passada, ela decidiu enviar uma mensagem à BBC News Brasil no Instagram para contar a sua história.
“Vocês já fizeram alguma matéria sobre covid nas escolas? O perigo para os professores? Porque a maioria das crianças são assintomáticas! Não têm febre, frequentam a escola normalmente. Vi muitos colegas e ex-colegas nesse pouco tempo ficando doentes também. Os médicos aos quais recorri falaram que estavam recebendo muitos professores em seus consultórios”, escreveu a professora em trecho de mensagem à BBC News Brasil.
Luiza, que tem 34 anos, relata que desde os primeiros sintomas ficou isolada em sua casa. Ela comenta que seu quadro foi leve e teve, principalmente, dor de cabeça constante e febre. Mais de duas semanas depois de cumprir o período de isolamento, ela afirma que está recuperada da doença.
Assim como Luiza, o professor de educação física Marcos*, de 47 anos, também relata ter sido infectado pela covid-19 durante a volta às aulas presenciais em uma uma escola municipal de São Caetano do Sul, em São Paulo.
Ele conta que voltou a frequentar a escola presencialmente em 10 de fevereiro. “Mas não tive contato com as crianças no período, apenas com vários funcionários”, diz. Ele detalha que suas funções eram no período da tarde, enquanto os alunos iam no período da manhã. “Como não havia alunos no meu horário presencialmente, fui dois dias à escola apenas”, explica Marcos, que continuou o trabalho remoto.
Cerca de cinco dias após frequentar a escola presencialmente, ele foi diagnosticado com a covid-19. Os sintomas de Marcos também foram leves. O professor acredita que pegou o coronavírus na unidade de ensino porque outros cinco funcionários do local também foram infectados no mesmo período. “Inclusive, um desses funcionários está internado”, diz Marcos à BBC News Brasil.
Entidades que representam profissionais da educação consideram que é possível associar uma infecção a uma unidade escolar quando há vários casos de covid-19 entre funcionários ou alunos em um mesmo período durante atividades presenciais.
Trabalhadores da educação afirmam que há muita subnotificação da covid-19 na categoria e, por isso, apontam que é difícil haver um levantamento que mostre a realidade da doença no ambiente escolar brasileiro. Eles alegam que há dificuldades para que possam comprovar que foram infectados nas escolas. O principal problema, dizem, é que autoridades ou proprietários de escolas argumentam que não é possível afirmar que a infecção ocorreu na unidade de ensino por se tratar de um vírus que circula intensamente pelo país.
O impasse do ensino presencial
Em meio ao atual cenário da pandemia, o retorno às aulas presenciais cada vez mais se torna uma dúvida para pais, alunos e profissionais da educação.
Uma das motivações para a volta ao ensino presencial são os levantamentos que apontam que a pandemia pode causar perda de aprendizagem na média do brasileiro, em razão do ensino remoto. Muitos estudantes sofrem com acesso precário à internet ou falta de aparelhos eletrônicos para acompanhar as aulas virtuais. Além disso, há uma preocupação intensa com a evasão escolar em decorrência das aulas virtuais.
O Consed afirma, em nota de 2 de março, que entende a atual realidade da pandemia, mas frisa que a maioria das escolas brasileiras, principalmente na educação pública, está fechada há quase um ano, “com graves prejuízos para aprendizagem e para os aspectos socioemocionais”.
“O direito à vida e o direito à educação são inalienáveis, complementares e devem ser respaldados, nesse momento de crise pandêmica, em evidências científica”, diz o conselho dos secretários de educação.
Ainda em nota, o Consed afirma que cada região deve analisar a situação local para definir sobre a volta às aulas. A entidade orientou que a decisão deve ser tomada “com segurança para estudantes e profissionais, observando os possíveis prejuízos educacionais que podem penalizar milhões de estudantes brasileiros”.
Para aqueles que defendem a volta às aulas presenciais no atual período, um dos principais argumentos é de que estudos apontam que crianças de até dez anos adquirem e transmitem o vírus com menos frequência do que as mais velhas ou os adultos. Em razão disso, elas representam uma taxa baixíssima dos casos de covid-19 na população em geral.
Um levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) de outubro passado com base em informações globais sobre a volta às aulas, abordado em reportagem recente da BBC News Brasil, mostrou que nos surtos identificados dentro de escolas pelo mundo, “na maioria dos casos de covid-19 em crianças a infecção foi adquirida dentro de casa”.
“Nos surtos escolares, a probabilidade maior era de que o vírus tivesse sido introduzido por adultos”, diz o documento da OMS.
“A transmissão funcionário-para-funcionário foi a mais comum; (a transmissão) entre funcionários e estudantes foi menos comum; a mais rara foi de estudante para estudante”, prossegue o documento. A OMS destaca que os estudos analisados ainda são considerados limitados.
Aglomerações, deslizes no uso de máscara ou outros comportamentos de risco adotados por adultos que têm contato (mesmo que pequeno ou esporádico) com crianças podem acabar, inadvertidamente, levando o coronavírus para dentro do ambiente escolar.
Em última instância, portanto, manter a segurança sanitária das escolas abertas é obrigação primordial de gestores, mas também responsabilidade coletiva de toda a sociedade, explicam os especialistas.
Os levantamentos analisados pela OMS foram feitos em diversos países pelo mundo. Na época, as aulas presenciais ainda não haviam sido retomadas no Brasil.
É possível voltar às salas de aulas agora?
Há muitos estudos que somente recomendam o retorno das aulas presenciais quando a transmissão comunitária do vírus estiver sob controle — o que não é o caso do Brasil no atual momento.
Diante da alta transmissão do coronavírus no país atualmente, as entidades que representam os profissionais da educação defendem que o retorno das aulas presenciais devem ocorrer somente quando houver um ambiente seguro, como quando a pandemia for considerada controlada ou com a vacinação dos trabalhadores da educação.
Na semana passada, o governo federal informou que os profissionais de educação foram incluídos no grupo prioritário de vacinação contra a covid-19. Porém, diante da lenta vacinação no país, esses trabalhadores ainda não possuem um prazo para que comecem a ser imunizados. “Não há uma data para isso. O Ministério da Saúde foi questionado por e-mail e disse que não sabia a data”, diz Heleno Araújo.
O Conass divulgou, em 1 de março, um comunicado no qual destaca que o país vive o “pior momento da crise sanitária provocada pela covid-19”. O conselho afirma que a “ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais que se intensificaram no período eleitoral, nos encontros e festividades de final de ano, do veraneio e do Carnaval”.
Em razão disso, o Conass defende, entre diversos pontos, “a suspensão das atividades presenciais de todos os níveis da educação” nas regiões com ocupação de leitos acima de 85% ou com “tendência de elevação no número de casos e óbitos”.
Pediatra e infectologista pediátrico do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Márcio Nehab afirma que as escolas que permanecerem abertas no atual período precisam controlar e rastrear os casos confirmados ou suspeitos. “É preciso haver envolvimento dos pais nesse tipo de proteção. Não dá para simplesmente os pais mandarem para a escola sem saber o que está acontecendo”, diz o especialista à BBC News Brasil.
Ele recomenda também que os pais não devem mandar os filhos para a escola se o estudante apresentar qualquer tipo de sintoma, como tosse leve ou febre. “Não deve mandar para a escola também quando alguém em casa está com a covid”, explica o infectologista pediátrico.
O médico afirma que o debate sobre o ensino presencial no atual período é complexo e destaca que não há respostas claras sobre o assunto. “Não há um consenso. Mas de forma geral, o que se tem percebido é que é óbvio que é muito complicado manter uma escola aberta quando os leitos de UTI estão lotados, há pessoas morrendo na emergência ou em casa e há uma falência total dos serviços de saúde. E essa situação tem acontecido em diversas cidades do país”, diz.
“Mas é muito complicado que as escolas, que são essenciais, estejam fechadas enquanto outros serviços como bares e restaurantes estão abertos”, afirma Nehab. No atual contexto da pandemia no país, ele defende que a melhor medida é um lockdown, com o fechamento completo das atividades como as escolas e comércios, para reduzir a transmissão do coronavírus.
*Nomes alterados para preservar as identidades dos entrevistados